Das cartas à memória de Craveirinha

Na Cela 1, um prisioneiro político redigiu inúmeras cartas em papel higiénico e com muita sorte conseguiu entregar ao seu destinatário, que devia destruir depois de lê-las.

No entanto, isso não aconteceu e o conjunto de missivas será este ano publicado em livro.

Os textos reflectem o sentimento revolucionário de um período, expressam a revolta, o inconformismo de um povo que clamava pela sua independência. A edição das cartas em livro imortaliza um pedaço da história de José Craveirinha e de Moçambique.

Zeca, o filho do poeta-mor, revelou que a obra já está pronta e será lançada ainda este ano. Sem avançar datas, indicou que a publicação é parte dos eventos intitulados “A Caminho do Centenário de Craveirinha”, que se celebra em 2022.  

Quando passam 98 anos após o nascimento do poeta-mor, que perdeu a vida em 2003, republicamos na íntegra a reportagem do jornalista Hélio Nguane.

Mas quem era o recluso que recebia as cartas de Craveirinha?

Segundo Zeca, era Luís Bernardo Honwana, que “estava na Cela 7. Meu pai havia dito que devia destruir as cartas, mas Luís preservava e entregava ao advogado, no dia da visita”, disse, agradecendo a coragem do autor da célebre obra “Nós Matamos o Cão Tinhoso”.

“Ele se arriscou…”, gaguejou Zeca, para tentar descrever o acto de coragem do escritor.

Durante anos, as cartas ficaram preservadas. “E neste ano temos a oportunidade de mostrar estes escritos ao mundo”, indicou.

E as cartas de Luís Bernardo Howana?

Zeca conta que o pai destruiu-as todas, pois “este era o combinado”, indicou lamentando a perda destas missivas.

É facto! As cartas foram escritas. Mas como um prisioneiro político teve acesso uma esferográfica para redigir?

“Meu pai surripiou uma esferográfica no interrogatório. E foi com ela que redigiu as cartas”, disse o filho de Craveirinha.

Além do livro de cartas, este ano será igualmente lançada, a título póstumo, a obra “Plebiscito”, composta por 200 poemas.

Zeca Craverinha detalhou que o livro terá 250 páginas e sairá antes de Maio, mês do aniversário do poeta-mor.

“Reuni poemas publicados depois da revolução dos cravos, 1974”, indicou referindo que os textos são amargurados.

Nos textos, o autor mostra a sua visão desgostosa sobre o país. Premonitório, vaticina, “faz prognósticos, que como podemos observar, se transformaram em realidade”, indicou, Zeca. O filho do poeta-mor disse ainda que, ao longo do ano serão realizadas várias acções cujo objectivo é preservar a obra e memória do seu progenitor, considerado como um dos maiores poetas da língua portuguesa.

“Em 2022, se Craveirinha fosse vivo faria 100 anos. Por isso, estamos a desenvolver uma séria de actividades em prol da celebração do centenário do escritor”, repisou, acrescentando que almeja ver o memorial e o centro de estudo em homenagem a este herói nacional, concluídos até à data da celebração do centenário do autor de “Xigubo”.

Infra-estruturas em construção

A POESIA de Craveirinha construiu um grito de revolução que até hoje ecoa e pode ser escutado. É consensual: com os seus textos, José Craveirinha conquistou o seu lugar ao sol, obra iniciada numa altura em que a nação ainda não existia, tal como é. 

Para divulgar os feitos deste poema de dimensão nacional e intercontinental, em 2017, amigos e admiradores da sua obra deram os primeiros passos para a construção de um memorial e um centro de estudos que levará o nome do poeta-mor. A ideia é que este seja um espaço para imortalizar o seu legado.

Apesar da esperança que há de que, com o lançamento da primeira pedra, feito por ocasião dos 95 anos, as infra-estruturas a erguer são o espaço ideal para perpetuar o trabalho do autor de “Karingana ua Karingana”, “Maria” e “Cela 1”, ainda vai ser necessário percorrer um longo caminho para que o projecto seja, efectivamente, materializado.

O edifício será erguido em frente ao Estado Nacional do Zimpeto, na cidade de Maputo.

O terreno, com cerca de 30×50 metros, é caracterizado pelo verde da relva, ervas daninhas e árvores de pequeno porte que ali brotam.

No dia do lançamento da primeira pedra, Zeca Craveirinha, o filho do poeta, percorreu todo o terreno, olhou para os convidados da cerimónia e sorriu. Certamente que os seus olhos não reparavam apenas para a paisagem, mas sim imaginavam o edifício já erguido. Abanou repetidamente a cabeça, como que a dizer: “o primeiro passo já foi dado”.

Óscar de Carvalho, sobrinho de Craveirinha, referiu que foi acertada a escolha do espaço concedido pelo Governo para a implantação do edifício. Afirmou que, por ser também um amante do desporto, o atletismo em particular, o poeta-mor ficaria satisfeito em ver o seu memorial naquele espaço.

Disse que espera que memorial e centro de estudos ajudem a mostrar os inúmeros papeis sociais que Craveirinha desempenhou.

 Um poeta nunca morre

PARA Calane da Silva, que foi amigo e colega de profissão do poeta-mor, Craveirinha é imortal, pois enquanto as suas obras estiverem preservadas, os seus escritos, o seu espírito estará entre nós.

“Ele mantém-se vivo. É uma figura incontornável na literatura e na cultura moçambicana. Craveirinha é imortal, ele é eterno. Porque ele vai representar depois dos séculos, os primórdios da literatura moçambicana. Por isso comemoramos com alegria este dia”, referiu, indicando que a memória de Craverinha ainda está viva.

O autor de “Xicandarinha na Lenha do Mundo”, descreve o poeta como figura incontornável. Rebelde, demonstrou o seu repúdio ao sistema colonial através de textos fortes, robustos, que exaltavam o sentimento de pertença pela terra mãe.

Calane indicou ainda que mesmo depois da independência, Craveirinha não deixou de demonstrar o seu espírito crítico. “Em poemas como ‘As tangerinas de Inhambane’, criticou anomalias”, frisa, destacando a sensibilidade do poeta face aos problemas que afligem a sociedade.

Craveirinha, metaforiza Calane, tinha uma bola de cristal, “fazia vaticínio infalíveis. Num dos seus textos, ‘Siavuma’, por exemplo, previu que o país teria um campeão olímpico. E aconteceu, Lurdes Mutola sagrou-se campeã olímpica”.

É necessário a preservação do espólio do poeta-mor. E mais, é preciso fazer mais estudos, para imortalizar sua vida e obra. Como académico, Calane fez uma pesquisa sobre o poema-mor, intitulada “O Estiloso Craveirinha. As escolhas lexicais bantus, os neologismos luso-rongas e a sua função estilística e estético-nacionalista nas obras Xigubo e Karingana ua Karingana”.

“Gilberto Matusse, também, é um dos grandes estudiosos da obra de Craveirinha”, disse, incentivando a investigação do poeta-mor.

José Craveirinha nasceu no antigo Lourenço Marques, a 28 de Maio de 1922. No seu percurso trabalhou como jornalista nos periódicos moçambicanos “O Brado Africano”, “Notícias”, “Tribuna”, “Notícias da Tarde”, “Voz de Moçambique”, “Notícias da Beira” e “Voz Africana”.

Como escritor e poeta usou diversos pseudónimos, entre os quais Mário Vieira, J.C., J. Cravo, José Cravo, Jesuíno Cravo e Abílio Cossa.

Foi o primeiro presidente da Mesa da Assembleia Geral da Associação dos Escritores Moçambicanos, entre 1982 e 1987. Em sua homenagem, a Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO), em parceria com a Hidroeléctrica Cahora Bassa (HCB), instituiu em 2003, o Prémio José Craveirinha de Literatura.

Entre os livros que publicou destacam-se “Xigubo”, “Cantico a un dio di Catrame” “Karingana ua Karingana”, “Cela 1”, “Maria” e “Izbranoe”, que lhe valeram vários prémios como “Cidade de Lourenço Marques” (1959), “Reinaldo Ferreira do Centro de Arte e Cultura da Beira” (1961), “Ensaio do Centro de Arte e Cultura da Beira” (1961), “Alexandre Dáskalos da Casa dos Estudantes do Império, Lisboa”, (1962), “Nacional de Poesia de Itália” (1975), “Lotus da Associação de Escritores Afro-Asiáticos” (1983), “Medalha Nachingwea do Governo de Moçambique” (1985), entre outros.

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