O cão da despedida

Noite sem estrelas, a máscara tira-me a possibilidade de sugar o ar fresco, sinto o vapor do meu hálito, conheço a qualidade da pasta dentífrica, da escova e do nível de dedicação que dou a limpeza dos dentes.

Paro de prestar atenção na máscara, no caos mundial e me concentro em mim. Olho para meu cão, deitado no meu colo, inquieto a olhar a cidade a se afastar. Sinto que não há volta, nada posso fazer para recuar, remontar as peças. Mudei, despedi-me desta fase particular da minha vida, ruma ao alcance de novos horizontes.

Olham para mim e para o meu cão. Olho para a minha existência e faço questões confusas, que embaraçam a minha lucidez e me fazem embriagar em dúvidas que fazem o vento tocar o meu olho, para depois sentir algo húmido e ansioso em escorrer no meu rosto.

Olho as luzes, vejo o carro a escalar a ponte, o cão ladra, os passageiros ralham comigo e seguro o animal. O veículo desce, sinto que meu mundo vai desmoronar, nunca me vi com tantos olhos atentos e a rezarem pelo meu fracasso. Seguro o cão e digo para mim mesmo, vou acalmar as dificuldades e triunfar. O cão é meu e tenho de controla-lo. Sei que não tenho a capacidade de gerir todas as variáveis, mas vou dar luta.

Já estamos na rotunda, o cão está calmo, entrego o valor ao cobrador, peço um toque, mas ignoram o meu pedido, grito e ele deixa- me a cinco minutos de casa. Desço com o cão. Caminhamos calmos, sento no computador, tento escrever algo que devia ter escrito há um mês. Sinto o caos nos meus dedos, as imagens da despedida congelam meus dedos por alguns instantes. Faltam cinco minutos, o cão ladra de dor, mas tenho de terminar o que escrevo. Os latidos de dor continuam e deixo o computador, saiu para fora, abraço o cão, mostro-me fraco, para que ele perceba que a dor que sente eu também sento-me. Pressinto que é uma despida, que meus argumentos emocionais não são mais fortes que a vontade que o animal tem de deixar-me. Seguro a área de raiva, é duro perder, mas tenho que aceitar. Aceito. Vou ao computador, sabendo que já passa da hora, continuo a escrever, escrevo. Oito minutos atrasado. Sinto que não me devia despedir do cão. Vou a cama, engulo uma dor intensa e o sono me leva. No pesadelo grito para mim que não estou pronto para despedidas.

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