Peço a Deus que ajude a humanidade a se livrar do bicho do séc. XXI*

Escrito por Sara Jona

Leonel, pedes-me uma reflexão que aborde uma música ou um filme, relacionando-a aos tempos que correm, certo? Respondendo ao teu pedido, utilizo no título deste textinho parte de uma música de Mercedes Sosa: “Solo Le Pido A Dios”. Ela toca-me profundamente…E fizeste-me o pedido num momento em que acabo de trocar uma mensagem com uma amiga que me falou sobre o filme “O escafandro e a borboleta”, adaptado em 2007, por por Julian Schnabel de livro, para filme. Após um click, fiquei a saber que o autor do livro é Jean-Dominique Bauby (23/04/1952 – 09/03/1997). Trata-se de uma obra inspirada na sua vida. Ele  que teve que ficar preso dentro do seu próprio corpo, vítima de uma grave e estranha doença, mais tarde, morreu de pneumonia. Ficar preso dentro de si próprio deve ser pior que ficar confinado dentro de uma casa, por mais pequenita que seja, não achas Leonel?

A ligação que faço sobre esse filme e o que me pedes, tem  a ver com a grande incógnita que temos vivido, por estes dias. “Se o amanhã chegar”, claramente iremos ulular de alegria, mas não sabemos se lá chegaremos, já dizia uma outra música: “Que será, será, what ever will be, will be, the future is not our to see, que será, será, what will be, will be …”

Mas olha, meu caro confrade, tenho fé de que veremos o arco-íris. A minha fé fundamenta-se na adesão aos novos rituais a que estamos sujeitos.  Há que cumprir e há que acreditar. A vida tem que ir em diante. Deus no-la-deu para a cuidarmos com muito amor e se assim não for, não sobreviveremos. Somos bons meninos, certamente que lavaremos as mãos com sabão ou com cinza e que ficaremos em casa. Obedeceremos a etiqueta da tosse e usaremos máscaras feitas à “nossa maneira”. Só temos que seguir a recomendação de colocar três camadas de tecido. Cumpriremos, meu irmão e confrade.

Cumpriremos, porque não haverá outra saída: “ou nadamos, ou afundamos” e ao que me parece, o que mais queremos é nadar, é flutuar, é “sair desta”. Na verdade, continuar a flutuar, na água, na terra ou pelo ciber-espaço ou mesmo boiar e sentir a serenidade de que a vida vale a pela, passará apenas por ouvir a tia Rosa Marlene e os seus colegas do Ministério da Saúde.

Temos que semear focos de esperança. E graças a eles, podemos sonhar com as maravilhas que aspiramos ter no mundo: a sorte, o amor, a justiça, a paz, a beleza, os amigos, a família, a comida, a bebida, a diversão, o trabalho, etc, etc., porque, quando nascemos há essa implícita promessa de que a vida valerá a pena e que um dia, se trabalharmos, se nos comportarmos “devidamente”, poderemos cantar, tal como a Mercedes de Sosa: “Graças a la vida que hay me dado tanto”. Ambicionamos nadar e acreditamos que “chegaremos lá”.

Entretanto, todos nós sabemos que há sempre aquele vírus que nos atrapalha, que nos pode impedir de nadar. Vem e afunda-nos. Mas há que o desinfestar das nossas vidas: o mar já tem sal, ajuda-nos. A natureza não é madrasta, oferece alternativas e temos que as pesquisar. Longe do mar, o cloro das piscinas é, de todo útil, mata os bichinhos maldosos e nadamos acreditando nisso. No ciber-espaço, colocamos o antivírus. A natureza conspirando ou não a nosso favor, a verdade é que, temos sempre que remar, remar acreditando. Se não for o caso, não terá valido viver…

É por isso que peço a Deus para que nos ilumine a nós moçambicanos e ao resto da humanidade. Que os virulentos não nos inundem com fake news de que mais do que 20 milhões de moçambicanos morrerão atacados pelos corona vírus; que os virulentos não coloquem água suja nos baldes inventados para o ritual de “lavar as mãos” inteligentemente inventado, para nós, neste tempo de pandemia; que aqueles têm como fazer o afastamento social o façam e colaborem com as autoridades sanitárias e que não seja necessário as autoridades policiais, para os arrastar para as nossas próprias casas: grandes ou pequenas… Nós viemos de um confinamento, o das barrigas das nossas mães. Tivemos uma pequena liberdade que é a de poder habitar na terra, mas há limites…digo isto lembrando do que disse o poeta moçambicano Mário Secca: a terra é um lugar confinado e as nossas casas também. Então pergunto, qual é a dor em ficar em casa? Cumpramos!

Não sejamos indiferentes à dor dos que padecem e dos que deles cuidam, à dor dos que lutam pela vida! Cumpramos e que a morte não nos encontre sem ter feito o suficiente, para cuidar de nós e da humanidade, bem o sugere Mercedes na sua música “Solo Le Pido A Dios”. Diz-nos a cantora, traduzindo:

 Só peço a Deus/Que a dor não me seja indiferente/Que a ressequida morte não me encontre/Vazia e só sem haver feito o suficiente.

Só peço a Deus/Que o injusto não me seja indiferente/Que não me esbofeteiem a outra bochecha/Depois que uma garra me arranhou esta sorte.

Só peço a Deus/Que a guerra não me seja indiferente/É um grande monstro e pisa forte/Toda a pobre inocência do povo.

Só peço a Deus/Que o engano não me seja indiferente/Se um traidor pode mais que alguns/Que esses alguns não o esqueçam facilmente.

Só peço a Deus/Que o futuro não me seja indiferente/Despejado está o que tem que caminhar/A viver uma cultura diferente.

Só peço a Deus/Que a guerra não me seja indiferente/É um grande monstro e pisa forte/Toda a pobre inocência do povo.

            É linda esta música, não achas? Põe-na, por favor, na tua mbenga e vamos cilar. A ver se a colocamos em papa, fácil de deglutir, para pôr na boca dos que ainda não perceberam a importância de ficar em casa.

            Olha, Leonel, todos os dias, sento-me no meu banquinho, às 19.50, à espera de ouvir a tia Rosa Marlene a divulgar nos números dos infectados pelo “covid-19”. Mas essa minha espera não é pelos números em si, muito menos é para ouvi-la dizer que aumentaram. Fico a “fazer figa” para que ela mude de semblante e eu celebre com ela o fim da caverna na qual temos vivido. Haverá, certamente, um novo caminho a seguir. Não ficarei indiferente, nem que a minha tarefa seja só sentar-me, ficar em casa. Só isso é suficiente para eu cantar bem alto que  a vida não me passou indiferente!

            Mas olha, para enfrentar estes dias de clausura, mais do que a música de Mercedes Sosa, sugiro que façamos como Jean-Dominique Bauby, que no filme que mencionei na abertura deste texto, fez: escreveu um livro, para espantar o confinamento no qual vivia. Verteu a sua dor, as suas alegrias no exercício da escrita, embora que de modo pouco convencional, pois, por estar desabilitado, precisou de quem descodificasse as suas mensagens para compor o seu livro. Mãos à obra. Vamos escrever enquanto ouvimos Mercedes Sosa, dando “Gracas a la vida”  e “…Pidiendo A Dios”…

            Deixo-te um abraço, confrade, a ti, à tia Rosa Marlene, aos seus colegas (todo o pessoal dos serviços de saúde), à Mercedes Sosa, e  a todos os activistas nesta luta contra esse famigerado bichão do séc XXI.

*Sara Jona. Contacto: [email protected].


Sara Jona é Doutorada em Literaturas e Culturas em Língua Portuguesa pela Universidade Nova de Lisboa. Docente de Cultura Moçambicana, Etnografia da Comunicação e Metodologia de Pesquisa na Universidade Politécnica. É consultora em avaliação de qualidade de ensino. É autora de manuais de ensino, artigos publicados em jornais e revistas nacionais e estrangeiras e de livros sobre: Cultura e Identidade Organizacional, Dicionário Português-Bitonga-Português e Ensaios sobre Literatura.

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