AULAS DE EMERGÊNCIA

0
475

Escrito por Elcídio Bila

Já começou a barulheira. – alertou Marito, trombudo.

Ela saía do banho quando, religiosamente,   duas semanas, àquela hora, o celular vestia-se de uma completa fúria: um festival de mensagens.

– Vamos ficar aqui meus bebés, deixem a mãe em paz. Chegou a hora dela.

Marito, num chamamento tradicional, juntava Wezz e Wilma junto do seu controle. Para que não houvesse qualquer distúrbio às aulas da Maria, o marido, sempre amigo, colocava os melhores bonecos. Quando os canais lhe decepcionassem, ou melhor, quando reinasse o descontentamento na dupla, ele seguia pela internet à procura de melhores “limpadores de lágrimas” e outros dilemas.

Já na cama, vazia para o seu bem-estar estudantil, com o celular na mão e o laptop entre as pernas, como se acabasse de o conceber, visualizava o que já se tinha iniciado nas famosas aulas online.

No início, pelos seus maus olhares à tecnologia e por achar um roubo ter que continuar a pagar mensalidade mesmo nesse Estado de Emergência, Maria só acompanhava o debate de outros colegas, e não se atrevia a discar qualquer verbo. Seu marido, a quem a conta da mensalidade vai furar-lhe o bolso, convenceu a amada a não dar para trás em relação às aulas, pois seriam muito úteis logo que a praga do coronavírus evaporasse.

Renitente nos primeiros dias, decidiu ir pelo que o parceiro lhe insistia, visto que podia ter alguma razão e, mais do que a penosa disputa pela razão, seria mesmo ele o sacrificado pelo POS do maldito instituto superior.Então, nada podia ter como desculpa.

Surpreendentemente, pelo terceiro dia consecutivo, a primeira mensagem que encontra do professor de Fundamentos de Marketing não está no grupo criado para as aulas, mas no seu privado. E as mensagens do sujeito andam sempre na ofensiva:

– Olá, Maria. Pensaste no que te disse ontem?

Ela olhou para aquilo atónita, sobretudo porque naquele instante, não se sabe porque cargas de água, ele arrombava a cortina do quarto, aliás, a capulana.

– Sabes onde está o dragão, tem muitos mosquitos na sala?

O celular, descomandado, bateu na sua testa antes de dar um mergulho na bacia das pipocas que tinha puxado para lhe ajudar a entender cada grafia dos seus colegas.

– Assustaste-me, pá.

– Mas porquê te assustas? Achas que vives sozinha?

– Não, não é isso.

– É claro que não devemos te incomodar, mas de vez em quando vamos querer falar contigo.

– Eu sei…

– E depois?!

– Deixa para lá.

Levantou-se, ainda com o peito em batimento violento, à procura de socorrer o marido. Ou melhor, à procura de sesocorrer. 

Doutro lado da sala, ainda com a cara de quem viu o diabo, acendeu no produto fumegante, como uma beata gigante, e colocou perto, mas distante das crianças. Antes de entrar no quarto, tal a pessoa mais preocupada do mundo, saiu, como quem vai buscar algo. Mas só voltou com mais ar no peito, e ainda bem, pois de contrário teria, a seguir, uma dose de enfarte letal.

Quando atravessou a entrada, ainda com movimentos reticentes, encontrou o marido no seu melhor – entre os meninos, rindo desvairadamente das macacadas de Tomy e Jerry. Ou não, rindo de um gato e rato em perseguição industrial, destruindo tudo e todos.

Da ponta dos pés, como se nem ponta tivtivess, como se nem pés até, passou por eles e puxou na capulana fixa pelos pregos para seguir com as suas aulas. 

O intervalo forçado já lhe tinha distraído por completo, embora não tivesse se concentrando em momento algum. Antes de se atirar à cama, olhou para o celular pálido de pipoca, seu computador meio-caído. Queria juntar-se a tripla da risada, mas sabia que Marito não se tinha esquecido das palavras mais dramáticas quando o assunto fosse escola.

Então, ainda que cabisbaixa, voltou ao inferno. Sacudiu a poeira das pipocas na capulana e seguiu as mensagens. Eram, a cada grupo, entre cem e duzentas e pouco. Antes de se atrever em rolar o screen para baixo, decidiu ver o que o seu professor-assanhado tinha lhe escrito.

Quando entrou na conversa, inacreditável o que viu: ela mesma, pelo menos a sua foto de perfil permite pensar que foi ela, continuou a conversa mesmo estando à caça de ar no quintal.

– Pensei. Mas o que tu queres mesmo saber?

– Se aquele beijo significou algo para ti ou não. – respondeu o professor, mesmo ciente de que era uma pergunta velha e moribunda.

 Aquele beijo não significou nada. – respondeu ela. Aliás, o seu WhatsApp.

– Se tu disseste que o amor pelo teu marido tinha esfriado e que já não tinhas a mesma tesão.

– Sério? Eu disse isso? – correspondeu o seu perfil.

– Sim. Será que já não lembras ou estás a gozar comigo.

– Não estou a gozar, só que não sabia mesmo o que a minha esposa tinha falado sobre mim.

– O quê? Não brinca assim, baby.

– Eu sou Mário, marido dela. Quem paga pelo curso que permitiu que tu a beijasses.

Tentou e tentou e tentou rolar, mas já não tinha nada por ler. As lágrimas, essas, existiam aos montes. E mais: uma vontade abismal de se devorar até não sobrar nem uma unha.

De repente, após o fim de quatro capítulos da série, Marito deu por falta da esposa. Seguiu ao quarto para certificar das suas aulas. Quando chegou, encontrou o celular ensanguentado e ela estatelada no chão, inconsciente.

Artigo anteriorO virtual sem consenso para a nova era
Próximo artigoSOCORRO DE EMERGÊNCIA
É licenciado em Jornalismo, pela ESJ. Tem interesse de pesquisa no campo das artes, identidade e cultura, tendo já publicado no país e em Portugal os artigos “Ingredientes do cocktail de uma revolução estética” e “José Craveirinha e o Renascimento Negro de Harlem”. É membro da plataforma Mbenga Artes e Reflexões, desde 2014, foi jornalista na página cultural do Jornal Notícias (2016-2020) e um dos apresentadores do programa Conversas ao Meio Dia, docente de Jornalismo. Durante a formação foi monitor do Msc Isaías Fuel nas cadeiras de Jornalismo Especializado e Teorias da Comunicação. Na adolescência fez rádio, tendo sido apresentador do programa Mundo Sem Segredos, no Emissor Provincial da Rádio Moçambique de Inhambane. Fez um estágio na secção de cultura da RTP em Lisboa sob coordenação de Teresa Nicolau. Além de matérias jornalísticas, tem assinado crónicas, crítica literária, alguma dispersa de cinema e música. Escreve contos. Foi Gestor de Comunicação da Fundação Fernando Leite Couto. E actualmente, é Gestor Cultural do Centro Cultural Moçambicano-Alemão

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here