Escrito por Elcídio Bila
Estava tudo tranquilo. Sim, sem mais vizinhos a discutir por causa de uma mensagem no telemóvel, sem o Marito resmungar por não conseguir conduzir alguns vegetais e pelo seu tornozelo estar massageado, depois de um tombo industrial.
Estavam todos tranquilos, rodeando a mesa, na sala, e saboreando os primeiros bocados de esparguete que Maria preparou acompanhado de peixe-ladrão. Aliás, tudo ficou mesmo tranquilo, no verdadeiro sentido da palavra, quando Marito e Maria, empenhados, resolveram o problema da Wilma, ou melhor, tentaram resolver.
– Por que se chama peixe-ladrão?
Entreolharam-se, e por baixo da mesa, cutucaram-se para ver quem se adianta na resposta. Marito estava nas nuvens, sorvendo os fios de massa como uma criança quando se perde no encantamento de um sorvete. Ela, a Maria, voltou a chutar no homem, já com uma dose de violência.
– Por que não comes, filha, depois falamos disso!? – despachou-a.
Wilma murchou como a couve há muito guardada na dispensa. Aliás, a outra e volumosa variedade de hortaliça segue pelo mesmo exemplo. A família não tem geleira, ainda, e decidiram compras pomposas, pois não se sabe quando o Estado de Emergência termina, até porque pode evoluir para um Lockdown.
– Não fica assim filha, o importante é que o peixe é saboroso.
Dois fios de lágrimas percorrem o rosto da menina, reprovando a desculpa. O rapaz, o Wezz, entretanto, maravilhava-se com o prato cheio, mais o contemplava do que comia. Da irmã pouco queria saber, ou quase nada. Tinha perdido, pelos vistos, todos os seus valores solidários.
– Come lá aí e deixa disso – disse o Wezz, maravilhado com a arte da mãe.
Marito, incomodado, decidiu armar-se em artista.
– É assim minha filha… – sobre a mesa, Maria cutucou-lhe, num claro gesto de aprovação pela atitude – esse peixe foi pescado pelo papá.
A menina, quase satisfeita, limpou as lágrimas e fixou-se no seu pai. Antes dele prolongar, a esposa fez-lhe claque.
– E eu estava com o teu pai nesse dia. Um dia muito lindo, parecido com o de hoje?
– Havia coronavírus? – estragou o Wezz.
– Não havia, apenas sol e um ar bem fresco – socorreu-lhe o pai, antes da Maria, de certeza, desnortear a mentira.
– Ah! – convenceu-se o miúdo, enquanto a massa rebolava na sua boca, com os mesmos ziguezagues que faz com o carrinho de mão.
– Estávamos juntos, eu e a mamã. Olhamos o peixe a brincar no rio, brincar e brincar e brincar e aí decidimos pescar, mas não foi fácil. Pulava, fugia, uma luta…
– Daí que chamamos peixe-ladrão. – interrompeu a mãe, impaciente.
– Mas roubou o quê? – questionou a menina, intranquila.
– Roubou o nosso tempo. – arriscou a mãe.
– Isso mesmo, o nosso tempo. – confirmou o Marito, atónito.
– Onde estava o tempo? – complicou Wilma.
– Estava no teu prato. Come lá aí. – agrediu-lhe a mãe.
Antes dela iniciar o festival da zanga, que como sempre têm as lágrimas como o artista principal, uma voz lá de fora incomodou o almoço.
– Dá licença…
Ficaram quietos. A ideia era perceber se realmente a voz lhes cabia atenção ou não. E repetiu-se, agora, mais vivaz:
– Dá licença…
Continuaram quietos, sem mexer nos talheres.
– Prima Maria!
Bateu o coração da dona de casa, mas não podia bater na mesa. Continuou quieta, inventado estratégia, até que Wilma abandonou o choro e mostrou ter tomates. Aliás, os tinha no prato:
– Estamos de quarentena, não há visita agora. – gritou, inocente.
– Mamã está? – insistiu a intrusa.
Calaram-se. Aliás, Mário levou a sua mão para amordaçar a menina bocuda.
– Trago dinheiro de xitique.
Levantaram-se os dois, os mais adultos, aflitos.
– Deixa aí mesmo na entrada, prima. – reagiu Maria, finalmente. Marito só se ria, enquanto levava a cerveja à boca, arrotando.