Gito

Escrito por David Bamo

Gito,

Eu não te escrevi antes por duas razões. Primeiro por negligência, sempre adiei esta missiva. Confesso-te: sinceramente desconheço o motivo; Outrossim, objectivamente, não te escrevi porque antes do isolamento social tinha a ilusão de que o tempo era precioso. E hoje, em quarentena obrigatória, vejo que a vida é sobre gastar tempo. Contemplar a ternura “desta causa perdida”, como diria o meu António Abujamra.

Hoje estive a lavar a memória, ouvindo os álbuns “Ekaya”, “Na ku Randza” e os “Tananas” para tentar compreender esta fusão que fizeste de tristeza e alegria, que se encontram para me tirar e me devolver a paz. Essas tuas melodias cheias de ti, Gito, me fazem crer que a música é definitivamente uma arte da incerteza. Não sei o que sinto.

Vejo-te incorporado na cultura árabe, espalhando a tua voz cheia de incenso, o que me lembra o meu pai. O Maurício. Eu nunca tinha visto o meu ente entre as melodias de uma música. Isto devolve-me a infância, leva-me às ruas de Hulene. Vejo rapazes que atravessaram a fronteira ilegalmente e nunca mais voltaram. Uns casaram-se por lá, outros tiveram um fim igual ao teu: baleados nas ruas da “Djone”.

E tudo isto faz sentido, pois ouvir-te na frondosa árvore de Jamboleiro da casa do meu pai, ressuscita os meus ancestrais que ainda me protegem e guiam. Ekaya. Onde reside a minha essência, onde tudo o que sou quanto matéria termina e fico de facto eu, a substância. Filho de alguém e membro de uma família. Aquilo que chamamos “Xilhambetwana”. Ou a força motriz da minha espinha-dorsal. Ekaya.

Entendo as razões que te levaram a partir para outros lugares. Explicaste-me na música “Fambaka”, que tanto celebrei e chorei. Pois esta canção é tudo o que não sou, e é também tudo que não tenho. Não te vou interpretar, não quero cair nos clichês que abundam por estas bandas. É tanta gente a querer adjetivar tudo, Gito. Todos querem opinar e ninguém quer se informar. Mas deixemos essa conversa para uma outra missiva. Ali ofereceste um outro som ao meu mundo, atribuíste uma trilha ao filme da minha vida. Os artistas são mesmo generosos…

Com os Tananas me ensinaste o valor da partilha. Foi quando entendi que a arte é também um lugar puro. Te deixavas levar pela música. Cantavas por amor ao teu trabalho, Gito.

E num dia como hoje, cinzento, tiraram-te a vida, privaram-me de outras criações tuas. E o que resta, num dia como hoje, são as memórias, que jamais perecem.

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