A chegada

Ao Jaco Maria, uma outra possibilidade.

A euforia do fim da penúltima guerra era celebrada pela crença de que haveria mais vida. Já se acreditava na eternidade. Aos 39 anos, Alberto brindava, no Fofoca, o calar das armas.

– Vês, eu te falei que isto ia acabar! Pede mais uma.

Quando saiu da terra natal para continuar os estudos em Maputo, a namorada ainda era donzela, peito rijo, bamboleio inocente. O gesto de trocar o esticar das pernas, no andar, nos ventos de Agosto e Setembro, com a saia de tecido leve, a esvoaçar, formava uma escultura.

Alberto tinha prometido que findo o curso, ao conseguir um bom emprego, voltaria para casá-la e levá-la para morar consigo, na capital.

– Gosto desta porque tem o nome dela. Há alguns anos que não me responde. Ouvi dizer que queimaram a viatura dos Correios que transportava as cartas. Cercaram a Land Rover, a luz do dia, quando o motorista parou para mijar, na Manhiça. Obrigaram-no, junto com o ajudante a entrar no carro, antes de atirarem o cocktail molotov. Ambos ficaram irreconhecíveis.

– Também acompanhei essa história pela Rádio Moçambique. Desconfia-se que seja mesmo grupo que tinha, na noite anterior, catanado vários homens na vila e estuprado as suas esposas. Parece que mais de sete gajos treparam a esposa do administrador.

Mas ouve cá! Achas mesmo que durante todos estes anos ela ficou a tua espera? Senhor, estamos em 92, saíste de lá em 77. Convenhamos!

– Tu não sabes nada! Não entendes isto, Tomás. Ela é pura. Eu senti isso nas cartas.

– Quando foi a última mesmo?

– Foi algures na década oitenta, faz muito tempo que não releio. Agora o hospital anda menos cheio, até consigo beijar esta Laurentina. Imagina ler um tempo de saudade? Quero vê-la, logo.

Alberto, com a mão direita repousou o jornal Notícias, com a esquerda levantou a revista Tempo, para uma altura ao alcance da vista e leu: “dizem as lendas que os mortos na guerra não foram phalhados.  Problema está aí. Na estrada, a guerra ceifou muitos. Essas almas insepultas reclamam companhia”.

– Então já leste a estória do Nelson Saúte. A mim prendeu este trecho: “nestes tempos fazer missa é convocar problemas. As pessoas morrem a caminho das missas”. Repara neste detalhe: “principalmente os manhambanas”. Então, deixa os mortos no seu lugar.

– Ela está viva em mim!

– Isso é falta de Laurentina. Minha senhora, peço mais uma cerveja.

– Sim, sinto falta dela, jamais a esqueci, ao longo destes anos. Por isso não me casei. Sequer envolvi-me com outras mulheres.

– A moça da Metodista, que engataste ali na Malanga? Achas que esqueci?

– Vejo que estás sem conversa. Aquilo foi passageiro. A tipa até casou-se. Casualmente, cruza-mo-nos, há dias, na Interfranca, empurrava a carrinha da segunda filha.

– Posso recordar-te, só para lavar a memória, da Ana, que te prendeu um tempo no Alfacinha. Já não saías dali.

– Eu estou a falar de amor. Tu não sabes o que é isso. Me espanta que Guida te ature.

– Um homem que nunca morou com uma mulher não pode falar-me de casamento. Não conheces o departamento.

– Irás ouvir a Laurentina a contar para Guida como terá sido bom um passeio pelo Tunduro. Espero por ela para ir ao Avenida ver  a peça que Eduardo White escreveu para a Companhia Mutumbela Gogo.

– Senhor, esquece os mortos. Bebe uma cerveja. Já agora, cruzei com aquela, o teu caso da Liberdade. Está bem apanhada, um borracho. Vestia uma saia preta com uma racha deixa sofrer o rapaz. Em 84 te gabavas de tê-la.

Passados alguns meses, numa tarde ensolarada, desce do Oliveira, no Mercado Central, em frente ao Restaurante Ponto Final, em Inhambane. Com a bagagem a pesar de saudade e algumas bugigangas para oferecer a mãe, a irmã, a tia, a avó e a Laurentina. Parou numa mercearia antiga, ocupada por uma família de mulatos depois que os portugueses proprietários abandonaram, em 75. Comprou Coca-Cola e algumas cervejas. E foi descendo pela rua de terra batida, ao lado do quartel, em Chalambe. Quase nada mudou. A Zeituna ainda vende tomate, cebola e alho, numa banquinha improvisada. Prosseguiu as suas léguas até perder-se de vista, para quem está a observar a partir da sede do partido Frelimo, que divide o subúrbio e a cidade cimento. Mafé é que prospera, na esquina que vai dar ao Mercado Giló à direita e ao Matadouro, a esquerda. A sua pequena banca de zinco tem um pouco de tudo. Seguindo a esquerda, o retrato não altera, casas de caniço, cobertas por macuti, cercadas por quintais de não me toques. As poças de água turva, denunciam que choveu havia pouco tempo. Cumprimenta velhos conhecidos, alguns dos quais já não se recordava. Cruza com o Manel, formalmente vestido, corpo atlético. Inconscientemente abraçaram-se e recordaram algumas peripécias de outros tempos.

O sabor salgado roça os lábios, o paladar capta. A água do mar passeia nos seus pés, na  escuridão perfurada por alguns fiapos dos candeeiros cobertos pelo Ti Jamu e Bistro, em frente às TDM. 20:36. As sombras da embarcação Moçambique repousam tranquilas, como se estivesse a espera de uma fotografia. Parado nas margens, exita ir até ao barco. Conforta-se com a possibilidade de vê-la em Luz, como descreveu a mãe. “No naufrágio de 89 ela foi levada para as profundezas, pela mão dos curandeiros que residem no fundo do mar. Encantados com a Laurentina, viraram o barco para levá-la. Muita gente morreu”. E fez saber: Não fales mais dela nesta casa! A água gelada nos pés, não apaga a sede de ver a Luz, de Laurentina.

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