As direcções de asas da água

Já falta bem pouco. Sacode a cadeia
Que chamam riquezas…que nódoas te são!
Não manches a folha de tua epopeia

Castro Alves (1847 -1871)

No “Discurso narrativo como teatro dos fantoches”, texto assinado por Simeão Cachamba, o autor discute, a dado momento do raciocino, o fenómeno tempo, que podia também ser época. O autor refere que o escritor, ao fixar a sua subjectividade, conceptualiza na sua obra a própria experiência vivencial. “asas de água”, de Nelson Lineu, parece ter a intenção de concordar.

O rio e as margens que percorrem o livro de poemas são, muitas vezes, dos “Bons sinais” de Quelimane, onde respirou os primeiros ares mundano – a parafrasear o locutor Mavi.
No que diz respeito ao tempo, entretanto, a época não é uma só. Não que não haja referências específicas, como, por exemplo neste poema, da secção designada “os sinais do Rio

12.
errava
queria esconder-me
no rio

doeu
os adultos verem
a guerra se aproximar
e não esconderem
a cidade no rio

se a guerra voltasse
eu esconderia o rio

Apesar de num passado recente termos tido insurreições bélicas, o signo da guerra que aqui vemos, tem flagrantes possibilidades de pertencerem a dos 16 anos. A que suscitou “Homoíne”, de Eduardo White, outro poeta da capital Zambeziana.
São várias épocas, até porque a poesia tem a proeza de ser mais velha que os Homens, que tem na infância do poeta a porta para a eternidade, para o universal.

Eugénio Lisboa, num dos ensaios da colectânea “Crónicas dos anos da Peste-II”, adverte que o “eu” indivíduo escritor não é o “eu” sujeito poético, são dois entes que, acrescento, nalguns casos, podem até ser antagónicos. Lineu, entretanto, constrói o seu poema muito ancorado a si, colocando Lisboa em questão nesta observação, a partir da Quelimane destes versos.
Ou então, como Eugénio esclarece noutro estágio de raciocínio, recorrendo a Carl Jung: Não foi Goethe quem criou Fausto, mas Fausto quem criou Goethe. A concordarmos, significa que este “Asas da água” pode estar a revelar-nos a cidade na margem dos “Bons Sinais” que evolui em Nelson Lineu.
Com efeito, neste percurso vai buscar “o travão da bicicleta/
retrai a barbatana do peixe”, para reforçar ainda mais o lugar donde partem estas asas. É uma voz que nos transporta para a sua cidade. Nisso recorda Gregor Samsa, na novela Metamorfose, de Franz Kafka, que nos dá a sua visão do mundo, a partir do seu quarto, quando o absurdo toma conta dos seus últimos dias de vida.
A continuar o labor de “Cada em mim”, Nelson Lineu nesta segunda obra vem com poemas curtos, com uma construção lúcida de imagens.
A palavra veste-se da liquidez do rio e toma a forma de versos para dar corpo às folhas que o poeta vê, essas mesmas que ora são aquelas na qual ele escreve ora são as das árvores ora são mera poesia.
Nelson Lineu continua a tradição poética de Quelimane que ofereceram-nos Heliodoro Baptista, nos permitiu ler “País de mim”, de trabalhar objectos concretos para construir as imagens.
Este poema que abre o livro, (os sinais do Rio):
1.
o mastro
oferece ao pescador
a última palavra
nos ouvidos do rio
o anzol abre o embrulho
de cócoras o gesto da água
procura a semente
nos lábios da cidade

O diálogo entre os textos ilustram um aturado trabalho oficinal. Terá valido neste percurso as orientações de Fernanda Angius, com quem trabalhou na estreia, “Cada um em mim”. Nestes jogos, cruzamos com esquemas como este verso (a ave no canto):
“Todo o poema é feito de ar”, a citar Ferreira Gullar, que ganha outros contornos noutro poema: “armadilhei/
a uma ave no ar/
amei-a”. Amou-a onde o poema acontece.

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