Que futuro para as salas de cinema?

MOÇAMBIQUE já foi uma referência quando se falava em sétima arte. O país era propício para a produção, distribuição e exibição de filmes. Do início dos anos 1900 até à década 1970 crescia o número de salas de cinema.

Com a independência nacional, as imagens em movimento transformaram-se num meio de exaltação da revolução, instrumento ideológico, participando, assim, na construção do “Homem novo”. As salas de exibição foram nacionalizadas e o foco central era a edificação da jovem nação. E resultou. Com o Kuxa Kanema, um jornal de actualidade que fazia projecções nas salas de cinema e fora delas, a mensagem de unidade nacional propagou-se e fez crescer o espírito de pertença.

A televisão penetrou no país e mostrou o seu poder. Mostrou que era um meio eficiente para a comunicação com as massas. Os investimentos na produção de conteúdos para a “caixinha mágica” subiram.

O Kuxa Kanema passou para os manuais de história, os cineastas tiveram que optar. Uns escolheram produzir para televisão e outros trabalhar de forma independente. As salas de cinema, aos poucos, perderam o seu impacto. E com as privatizações, grande parte passaram para empresários que, na sua maioria, queriam obter lucros e incrementar outros negócio, além da sétima arte.

Em todo o país, por exemplo, muitas salas de cinema foram transformadas em armazéns, templos religiosos e/ou simplesmente abandonadas. Das dezenas de salas existentes, contam-se com os dedos das mãos as que estão em funcionamento.

Com o objectivo de reflectir sobre estes espaços arquitectónicos e sociais, o projecto Museu de Cinema organizou três eventos: uma exposição, workshop e seminário sobre as “Antigas salas de cinema de Maputo”.

Quando se fala sobre as antigas salas de cinema, surgem algumas questões: destruir, adaptar, re-vocacionar ou deixar como elas estão? A indagação divide muitos. Uns defendem a preservação destes edifícios, pois são património material que contribui para a narração da história do país.

Por exemplo, o arquitecto Luís Lage, que falava na abertura do quarto seminário “Museu de Cinema”, defende que os edifícios podem ser reabilitados, mantendo o traço, o estilo, com o qual foram edificados. Realçou ser necessário apostar em salas com capacidade para 100, 200 ou 300 pessoas.

Para o cineasta Sol de Carvalho, que é proprietário do Cinema Teatro Scala e Tufo, estas salas podem ser destruídas para dar lugar à construção de edifícios melhor preparados para a realidade actual. Realçou que estes locais devem proporcionar uma experiência extra para o público que as visita.

“Porque temos a televisão, ir a uma sala de cinema deve ser um evento. Além do som e da imagem de alta definição, cadeiras móveis, as salas devem investir noutras componentes”, realçou, acrescentando que os edifícios foram construídos, na sua maioria, há mais de 30 anos, num contexto diferente do actual, “numa época em que a televisão não tinha o poder que tem e a Internet ainda não imperava”.

O docente Amílcar Mascarenhas diz ser necessário a existência de acções concretas, por parte do Estado, para a preservação das salas de cinema, ao mesmo tempo que defende a construção de novas salas, com tamanho adaptado à nova realidade.

“Temos de investir nas salas de exibição informal que, na sua maioria, são de construção precária”, disse, citando dados estatísticos para enumerar que até 2013 existiam 35 mil pontos de exibição. “Temos que potenciar estes espaços, que servem grande parte da nossa comunidade”, defendeu.

Potenciar pontos de exibição

Ontem, no segundo dia do seminário, interveio o jovem cineasta Fábio Ribeiro. O membro da Anima: Estúdio Criativo, apresentou o projecto “2.35”. A ideia é incrementar a distribuição e exibição de filmes na comunidade de modo garantir a sustentabilidade da produção de filmes.

A iniciativa fez um estudo de viabilidade e percebeu que menos de cinco por cento da população moçambicana tem acesso ao cinema. Verificou que o cinema móvel não alcança a todos. No entanto, explicou, as pessoas gostam da sétima arte, querem ver filmes. Elas enchem casas de exibição, que na sua maioria não têm condições, para mostrar os filmes.

“A iniciativa 2.35quer levar o cinema às comunidades. Queremos construir salas de exibição de filmes, nos mesmos moldes das casas locais. Estamos a trabalhar com as associações para criar condições adequadas à realidade local e, por conseguinte, galvanizem as comunidades a frequentá-las”, afirmou, detalhando que os edifícios serão amigas do ambiente.

Fábio Ribeiro garante que tem um plano de negócio para sustentabilidade do projecto. “Com a iniciativa ganha a população que terá acesso aos filmes, ganham os cineastas que vão ter os seus filmes exibidos e condições para a produção de mais películas”, avançou.

Espaços alternativos

WILDFORD Machil é um sonhador, com amigos criou o Studio 5, um projecto que mescla a arquitectura e o cinema. Em 2016, é feita a primeira exibição, que alcançou em três sessões, menos de 100 pessoas. No ano seguinte a iniciativa insistiu e fez a segunda exibição. Em 2017, participaram de um festival Afropunk na África do Sul. Em Abril do ano passado projectaram mais uma vez, agora em três dias e alçaram mais pessoas.

“A nossa intenção é lançar, no próximo ano, a primeira edição do nosso Festival de Cinema de Maputo”, disse Wilford, explicando que nos últimos três anos a ideia era a troca de experiência para o alcance do objectivo que norteia o seu projecto: “Levar o cinema às comunidades”.

A cidade de Maputo tem menos de 10 salas de cinema em funcionamento e as pessoas querem cinema. “É necessário levar a sétima arte aos bairros. Esperamos alcançar 46 dos 56 bairros da urbe”, realçou.

Além da projecção de filmes nos bairros, a iniciativa pretende sensibilizar a população para que tenha consciência da importância da sétima arte nas suas vidas. “Queremos criar um noticiário, focado em arquitectura e cinema. A ideia é aumentar o nível de literacia sobre o assunto”, comentou.

Esperançoso, Wildford Machile acredita que o projecto tem tudo para dar certo. “Estamos na fase de produção do festival e esperamos concretizar a iniciativa no próximo ano”, referiu.

Ainda no seminário, o cineasta Ivandro Maochas apresentou o projecto NetKanema, que consiste na exibição de filmes em plataformas digitais. Inspirado em plataformas como Netflix, o nacional criou um projecto que quer potenciar o cinema moçambicano.

“O NetKanema, uma plataforma streaming, que é uma tecnologia que envia informações multimédia, através da transferência de dados, utilizando redes de computadores, especialmente a Internet, e foi criada para tornar as conexões mais rápidas”, realça.

O que é feito delas?

UM mês depois da conquista da independência nacional, o Governo iniciou, a 24 de Julho, o processo de nacionalização dos imóveis de habitação, comércio e serviços, sob a decisão do Presidente Samora Moisés Machel. Mais tarde, com a abertura do país ao mercado, a maior parte dos edifícios foi cedido para alienação e compra. Foi nesse contexto que algumas salas de cinema começaram a desviar-se da finalidade para a qual tinham sido concebidas. Por exemplo, a sala de cinema São Miguel foi transformada para dar lugar à Assembleia Popular (hoje Assembleia da República).

Localizado na Avenida 24 de Julho, o Cine Teatro África virou, primeiro, “Casa de Deus”, sob exploração da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), e, posteriormente, o Governo entendeu dar um outro destino à infra-estrutura, cedendo-a à Companhia Nacional de Canto e Dança (CNCD).

O Cinema dos Continuadores, contíguo ao Instituto Nacional de Audiovisual e Cinema (INAC), foi adquirido pela Universidade Eduardo Mondlane, que ali instalou o seu centro cultural.

Na baixa de Maputo encontra-se um dos mais antigos cinemas de Maputo: O Cine Gil Vicente, localizado na Avenida Samora Machel. Nos últimos anos esteve sob gestão da empresa portuguesa Lusomundo, mas porque o negócio já não se mostrava rentável, a sala foi cedida ao Município de Maputo.

Ainda ao longo da “Samora Machel”, e no cruzamento da Avenida 25 de Setembro, está o Cinema Scala, ainda em funcionamento, sob a gestão de uma entidade privada, a Promarte.

Na baixa, mesmo defronte do Arquivo Histórico da Universidade Eduardo Mondlane, existiam dois cinemas, nomeadamente o Estúdio 222 e Cinema Matchedje. O primeiro foi transformado em discoteca-bar e o segundo virou Cine Teatro Gilberto Mendes. No espaço onde estão estes duas antigas salas de cinemas funcionava o Cine Varietá, que esteve aberto até 1967.

Nem todas as salas tiveram a mesma sorte. Por exemplo, o cinema Olímpia, junto ao badalado Mercado Xipamanine, é abrigo de marginais. O cinema Império, no bairro do Aeroporto, na Avenida de Angola, virou armazém. Na Avenida do Trabalho, o cinema Tivoli fechou, tornando-se num edifício completamente abandonado.

O Cine Charlot, localizada no bairro do Alto-Maé, na Avenida Eduardo Mondlane, desde o incêndio que deflagrou no edifício, em 2013, não mais rodou película alguma naquele espaço. E o Cinema Xenon foi demolido e no seu lugar construído novo prédio, como tantos outros que diariamente surgem nos centros urbanos.

Uma exposição histórica

O SEMINÁRIO Museu de cinema culmina hoje com o lançamento do livro “CineGrafias Moçambicanas”, apresentado pelo cineasta João Ribeiro e distribuído pela Kapicua. Ainda neste dia, os presentes poderão acompanhar as apresentações da jovem historiadora, Vanessa Massitela,  e da  pesquisadora portuguesa, Inês Dias.

Além dos debates, o seminário é complementado com uma exposição patente, até sábado, no Centro Cultural Franco-Moçambicano (CCFM).

Na galeria do CCFM, é possível contemplar registos videográficos, desenhos, maquetas e a reconstituição das plantas das antigas salas, usando software de desenho tridimensional. Além das imagens estáticas, os visitantes podem ver e ouvir duas dezenas de entrevistas com antigos trabalhadores do Instituto Nacional de Cinema, afectos às salas de cinema da capital e a algumas áreas de produção.

Falando em representação da Associação Amigos do Museu de Cinema (AAMCM), Diana Manhiça explica que a mostra traz ainda alguns documentos originais, dos acervos da Biblioteca Nacional e do próprio INICC, e cadeiras originais de algumas salas de cinema.

“Na exposição fizemos a identificação geográfica da distribuição desses edifícios, actualmente fechados, destruídos, readaptados a outras funções, ou ainda, em morosos e adiados processos de reabilitação física”, acrescenta, apontando que a “exposição instiga à partilha de responsabilidades e perspectivas sobre estes espaços, que representam uma época tecnológica e socialmente distinta, em risco de desaparecimento”.

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