FESTIVAL MAFALALA: Inclusão e valorização da cultura suburbana

FOTOS DE I. Sitóe e J. Machel

“Vou a cidade”. É comum ouvir essa construção frásica de residente de um bairro periférico da cidade de Maputo, como se o subúrbio fosse alheio a ele. Guiada pelo espírito de mudança, com vista a inclusão e valorização dessas zonas, do ponto de vista cultural, social e antropológico, a Associação Iverca concebeu o Museu da Mafalala.

O projecto de que já se vinha falando em corredores restritos foi apresentado na manhã de ontem, na sala nobre do Conselho Municipal, no seminário Património Cultural Suburbano de Maputo, no âmbito das actividades da 10ª edição do Festival da Mafalala. Nascido e criado naquele bairro periférico, Ivan Laranjeira, envergando terno e gravata, depois de ocupar a mesa central, explicou que o propósito é, a partir daquele espaço, promover a inclusão de grupos marginalizados.

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Ivan Laranjeira

O jovem que preside a Associação Iverca, dirigindo-se ao autarca da capital do país, David Simango, Embaixador da União Europeia em Moçambique, Sven Von Burgsdoff e dos participantes, falou nos seguintes termos: Procuramos discutir a cidade, a sua memória e a sua história, envolvendo os grupos marginalizados”.

O edifício do futuro museu, mais tarde contextualizou o historiador Rui Laranjeira, espelha aquilo que é o mosaico cultural do bairro. O mesmo respeita as mais diversas gentes vindas, sobretudo, da região norte do país, o que se torna evidente na predominância da comunidade árabe ali instalada.

A ideia brotou depois de, ao longo destes nove anos de actuação da Associação Iverca, “termos notado que há um rico património cultural que não recebia o seu devido valor”.

Depois de, em 2014, a União Europeia ter aberto os “cordões à bolsa” para financiar o projecto, o passo seguinte foi sentar com a comunidade debaixo da sombra para explicar o que estava por vir.

Houve, prosseguiu, casos de alguns moradores que desconheciam o conceito de museu mas, após o esclarecimento, surpreenderam-se com a criatividade das suas sugestões e contributos, assumiu Rui Laranjeira.

Já em pé e de braços dados com a comunidade, agora está ser dado seguimento a ideia do Museu da Mafalala, esperando-se que este não seja um espaço. Na verdade, a finalidade última é torná-lo num depositário da cultura e da memória dos personagens que animam a história do bairro.

“Pensamos num organismo vivo que estimula o auto-conhecimento da comunidade para que a mesma possa ter consciência da sua identidade e auto-estima”, partilhou Rui Laranjeira.

Neste sentido, atirou que o objectivo é contar histórias que, nas suas palavras, durante muito tempo foram silenciadas. Por essa razão a aposta será sempre em metodologias participativas.

Obedecendo ao ditado que diz: “É de pequeno que se torce o pepino”, nesta caminhada, acrescentou o historiador, a ‘Iverca’ abraçou as escolas primárias Unidade 23 e 24, ambas edificadas no bairro, para “desde cedo trabalhar para que os alunos tenham consciência da sua memória”.

Um edifício que é um discurso 

Ao tomar da palavra Remijo Chilaule, que integra a equipa de arquitectos responsáveis pelo design da infraestrutura, começou por, num datashow, exibir fotografias ilustrando o edifício do Taj Mahal, o mausoléu edificado em Angra, na Índia.

“Mas afinal o que é património?”. Esta foi a primeira pergunta que Chilaule e a sua equipa se colocaram. A busca pela resposta, em cascata, foi descendo de conceitos internacionais até o ponto de assumirem que, no caso específico, apenas a Mafalala poderia responder.

Acompanhados pelos guias turísticos da ‘Iverca’, foram para o interior do bairro onde, aos poucos, iam identificando os traços dessa zona com cerca de cinco mil habitantes, e que, apropriados para o projecto final, foram se convertendo em parágrafos que sustentam o discurso que é o prédio de dois pisos que vai ser o museu.

Neste contexto, o mesmo edifício converte-se em narrativa de vivências e memórias do próprio bairro.

A equipa apreendeu elementos como as construções de madeira e zinco, os becos estreitos que desaguam em espaços abertos de uso comum, as árvores frondosas, assim como as antigas cantinas que pertenciam aos colonos, sem ignorar, igualmente, as residências de material convencional erguidas antes de “75”.

Os arquitectos foram até ao detalhe, a ponto mesmo de estender as suas atenções aos formatos das portas e janelas que evidenciam, em muitos casos, as marcas da herança árabe dominante nos povos vindos, sobretudo, da Ilha de Moçambique, em Nampula.

“Os becos alimentam a circulação quotidiana do bairro. E nós quisemos trazer esse tipo de marcas para o edifício”, revelou Remijo.

Na apresentação do protótipo, a equipa de arquitectos explicou que a cor de ferrugem na parte central do edifício visa representar as casas de madeira e zinco já degradadas do bairro.

Os acessos para o interior – que é composto por uma galeria com dois pisos, um espaço de lazer e escritórios – se assemelham aos becos da Mafalala. E a abertura dos espaços maiores obedece também as características do próprio bairro.

Histórias que alimentam o turismo     

Ao retomar, para explicar a sustentabilidade do projecto, uma vez que há vários exemplos de fracasso, como foi dado a conhecer durante o evento, os casos da Casa-Museu José Craveirinha e do Centro Cultural de Matalana, Ivan Laranjeira assegurou que a base será o turismo.

“Queremos aumentar o número e o tempo de estadia de turistas na Mafalala, cuja média é de oito pessoas por dia”, disse, acrescentando que, no entanto, o turismo não vai limitar-se a visitas ao museu… continuará a haver visitas guiadas que visam explorar o quotidiano de forma espontânea.

Dar protagonismo aos marginalizados

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Becos da Mafalala

Na Cidade Maravilhosa, como é carinhosamente tratada a cidade do Rio de Janeiro, no Brasil, há já um exemplo similar, que é o Museu da Maré. O mesmo pertence a uma comunidade constituída por 17 favelas.

Cláudia Rose, membro do centro que coordena o museu explicou, no painel subordinado ao tema “Valorização, Gestão de Patrimónios de periferia e planificação urbana”, a importância de museus desse género.

“Este projecto é importante porque inclui grupos de marginalizados e contribui para diálogos, assim como edifica pontes para que os residentes da periferia possam perceber que são parte integrante das grandes cidades”, disse.

Na sua explanação destacou a particularidade de iniciativas do género, a que designa museu social, de dar protagonismo a personagens outrora ignoradas e esquecidos nas narrativas sobre as cidades.

Neste contexto fez questão de esclarecer que estes museus se diferem dos que, desde o século XVIII, dominaram o mundo. E esses museus eram espaços dedicados a guarnição de artefactos que simbolizam algum grupo ou registo histórico.

O museu social, prosseguiu, é mais dinâmico estando a servir de emancipador dos excluídos e de preservação e valorização das suas memórias.

Por sua vez o arquitecto Júlio Carrilho, na mesma mesa, chamou atenção ao facto de “a pressão económica ter já levado abaixo alguns edifícios simbólicos da cidade e, segundo fez notar, o mesmo vai acontecer com a Mafalala porque está próximo do centro da urbe”.

É bom, prosseguiu, que se pense nisso. A localização do bairro, destacou, o torna muito valioso. Sugeriu então que a criação de maquetes, não só da Mafalala para que se possa preservar essa memória.

Proteger uma

relíquia de África

Conhecedor do continente, em parte, das suas missões diplomáticas, o Embaixador da União Europeia em Moçambique, Sven Von Burgsdoff apelou, na sua intervenção, durante a abertura do seminário, à preservação da cidade de Maputo que considera única em África.

Maputo, conforme explicou, ainda preserva a arquitectura antiga nos seus edifícios, o que, já não se encontra em quase nenhuma grande cidade do continente africano.

“É preciso proteger a cidade, temos que preservar o património para não perder a sua beleza, que é única”, disse.

De forma a aclarar a importância desta atitude, Sven Von Burgsdoff trouxe à mesa o facto de que as previsões indicam que, em poucos anos, haverá um grande êxodo rural de gente a ir à busca de melhor oportunidades nas cidades, pelo que é necessário saber como lidar com isso.

Afinando pelo mesmo diapasão, David Simango, presidente do Município de Maputo, disse que “a preservação do nosso património será impossível sem a participação de todos”.

A sua intenção, segundo disse, é fazer do subúrbio um lugar não periférico e parte integrante da cidade de “pedra e cal”.

Considerou que iniciativas como a do Museu da Mafalala constituem oportunidades de proporcionar o legado do património cultural ao acesso de mais pessoas.

Entretanto, para que estes projectos possam gerar emprego e rendimentos para os cofres do Estado através do turismo, Zacarias Sumbana, economista com larga experiência na área, despertou para a necessidade de este ser um projecto integrado com a intervenção de vários agentes, entre os quais culturais, económicos, sociais, artísticos e turísticos, sem descurar a presença da academia pelo seu valor na pesquisa e documentação.

Os mesmos, continuou, devem apostar na animação turística e formação dos funcionários que trabalham em espaços turísticos para que possam prestar melhores serviços. Lamentou um episódio recorrente.

“Um dia entrei no Museu da História Natural e não havia lá ninguém para me guiar. Os funcionários estavam lá atrás a brincar, o mesmo acontece no Museu da Moeda ou mesmo na Fortaleza de Maputo”, lamentou, para quem deve se dotar os funcionários destes espaços de instrumentos teóricos para melhor desenvolverem o seu trabalho e cativar o visitante para um outro volte com mais gente.

*Publicado no Jornal Notícias na edição de 08/10/17
 

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