MIA COUTO: “Terminei um dos maiores desafios da minha vida literária”

(Escrito no dia do lançamento, 1/11/17)
Fotos de Isaías Sitóe

COM “O bebedor de horizontes”, livro a lançar hoje em Maputo, Mia Couto encerra o capítulo da trilogia “As Areias do Imperador”, obra de que nos últimos três anos colocou dois romances nas prateleiras das livrarias e bibliotecas.

Na manhã de ontem, quando chegamos à Fundação Fernando Leite Couto (FFLC), a agenda do escritor estava apertada. O celular não parava de chamar. As chamadas eram cada vez mais longas. Passado algum tempo, gentil, desculpou-se. A razão, em parte, era o lançamento de hoje a noite.

Mia Couto confessou que, pouco depois de terminar o terceiro e último livro da trilogia, vive uma sensação de alívio por esta meta cumprida, avançando que os rascunhos do próximo já ocupam a sua escrivaninha e que, a qualquer momento, sacará do bornal.

“Terminei um dos maiores desafios da minha vida literária”, expressou, expondo que, para si, enquanto a poesia, por onde se iniciou, é “uma luz” que acende, cabendo-lhe apenas dar vida às cores que a iluminação o sugere. Na “prosa, a exigência é outra”, quanto mais tratando-se uma narrativa com três volumes, assumiu.

Mia Couto, sentado num dos cantos da biblioteca da fundação, ainda que despropositadamente, de costas para a prateleira com os seus escritos, admitiu a tristeza de ter de abandonar os personagens que povoam “Mulheres de Cinza”, “A Espada e a Azagaia” e “O bebedor de horizontes”.

A convivência com esses seres que nascem da fantasia, prosseguiu, é sempre intensa e íntima, daí que, neste momento, de despedida sinta um certo vazio.

“Elas não morrem definitivamente, mas não se pode permitir que continuem a ser parte do quotidiano porque são exigentes e carentes. E, senão, impedem que outros, do próximo livro, surjam”, esclareceu.

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Capa do último livro da Trilogia

Um imperador confuso consigo mesmo

ENTRE os que devem abandonar as redondezas do escritor está o imperador Ngungunhane, que é o mote da trilogia. No primeiro volume, o “Leão de Gaza”, surge apenas em referências e citações. É no segundo que ocupa posição central e passa a emitir discursos directos.

Já no terceiro, o último monarca da dinastia Dlamini, é ilustrado como um ser contraditório a residir em paradoxos. Ele é forte num momento e fraco noutro. A estória vai da detenção de Ngungunhane, em Dezembro de 1895, em Chaimite, e a posterior viagem na embarcação, de Moçambique até Lisboa e mais tarde à Ilha dos Açores.

Nessa viagem fez-se acompanhar por três das suas mais de 200 esposas, o filho Godido, o tio e conselheiro Mulungo e o seu cozinheiro Ngó. O chefe dos Mpfumos, Nwamatibjane Zixaxa é, igualmente, enviado ao exílio com a corte de Gaza.

O investimento lusitano nessa jornada era exibir o imperador como troféu para a Europa, uma vez que o Império de Gaza era considerado um dos maiores de África na sua época.

Durante o percurso, no meio do mar, como auto-consolo, Ngugunhane, às vezes, se iludia com a ideia de que, na verdade, a viagem resultava de uma combinação sua com o Rei de Portugal sem que os outros soubessem de tal agenda. Nesses devaneios ignorava a derrota liderada por Mouzinho de Albuquerque.

“Zixaxa”, situa Mia Couto, “ganha (no romance) outra dimensão, quando o imperador se deixa humilhar, ele consegue ser mais digno”.

Já em solos lusitanos, o imperador, como faz questão de frisar o escritor, que era inteligente. Ganha consciência de que a sua estada em Açores foi, provavelmente, o que salvou-lhe a vida, uma vez que, em Gaza, depois da derrocada, estaria exposto aos conflitos, traições e golpes para a sucessão do trono, por parte dos seus, ou mesmo, vindo dos portugueses.

Em algum momento, ao que se depreende, conformou-se com o seu destino. Mas as perturbações nos seus pensamentos nunca deixaram de existir. Para espairecer, talvez, uma vez que não foi jogado para as masmorras de um calabouço, caçava coelhos, que depois vendia.

Preso numa ilha, muitas vezes, nada lhe sobrava a não ser contemplar o horizonte, que o embriagava com as suas próprias alucinações. (“Daí o título: o bebedor de horizontes?”, foi uma pergunta que escapou). Era o seu fim! Aquele mar estendido diante de si eram as grades que cercavam o seu destino.

Quanto às acusações de tirania que lhe são atribuídas, na trilogia, a sugestão é que se olhe para ele no seu contexto e não se esqueça das peripécias palacianas que a humanidade testemunhou em várias partes do mundo, sempre com muitos episódios traições, cumplicidades e assassinatos.

Descendentes de Zixaxa nos Açores

É TÍPICO de romances históricos, embora o autor decline esta catalogação, que a fronteira entre a ficção e a realidade seja ténue, o que está patente em alguns factos que Mia Couto encontrou nos Açores.

Se para “Mulheres de cinza” teve de deslocar-se a Inharrime e Zavala, por exemplo, onde colheu depoimentos de várias pessoas sobre a etnia chopi, de forma a captar a essência deste grupo do Sul do país. “O bebedor de horizontes” exigia outras romarias, daí uma temporada na ilha.

“Nos Açores todos sabem que houve prisioneiros vindos de Moçambique e a memória é muito amigável”, constatou o escritor, sugerindo até que “foi como se chegassem prisioneiros e fossem recebidos como hóspedes”.

Uma prova é que, por exemplo, Zixaxa adaptou-se ao estilo de vida dos portugueses, teve uma história de amor que resultou em descendentes que, com orgulho, mantêm o apelido.

O autor da trilogia “As Areias do Imperador” conta, igualmente, que Godido distribuiu galanteio pelas moças da sociedade portuguesa. É neste contexto que, aproveitando-se das desconfianças de que amantizava uma das esposas do pai, o imperador, no último livro deste projecto, relaciona-se com a rainha Dabondi.

Duas vozes femininas na narração

Imani, cuja tradução, partindo de várias línguas bantu, significa “quem é?”, é o nome da narradora poliglota que atravessa a trilogia, ocupando um papel central. Ela é da etnia chopi, praticamente assimilada, que desde o primeiro volume troca paixões com o sargento português Germano de Melo.

Ela embarca a Portugal na qualidade de tradutora das autoridades lusitanas. Educada numa missão católica, fluente nas línguas portuguesa, chopi, emakua, Imani – essa mulher à busca de si mesma – serve de ponte entre esta gente e é sob a sua visão que o leitor é conduzido ao longo da estória.

“Eu precisava de uma personagem que fosse tradutora e que abrisse as portas das culturas africanas e europeias”, justificou Mia Couto. Entretanto, neste “O bebedor de horizontes”, ela é acompanhada por outra mulher, a rainha Dabondi.

A visão de Imani tende muito para Portugal, o que o escritor quis equilibrar, ao introduzir uma mulher com as raízes mais assentes no africano. É neste sentido que a trilogia é conduzida por duas almas femininas.

Imani embarca grávida do sargento Germano de Melo, que “temendo ocupar esse lugar do marido, embora ainda apaixonado, desistiu do relacionamento”. O fim, ironicamente, foi anunciado através de uma carta que ele escreve para ela. Foi, igualmente, através de missivas que o leitor soube e acompanhou o desabrochar desse “amor”, quando, no primeiro volume, ele trocava correspondências com a metrópole.

Refeito 20 vezes        

AS mulheres, não ignorando excepções, quando vão sair, porque sempre exigentes com a sua aparência levam muito tempo indecisas com os adereços. Aquilo vira, mexe e remexe até que se conformam com o jeito que considerem, no mínimo, aceitável.

Foi essa metáfora que Mia Couto recorreu para explicar porque razão o terceiro volume terá sido o mais difícil. “Algumas vezes até pensei em desistir”, recordou.

Só depois de 20 tentativas é que, finalmente, a obra saiu. Ao que explica, nas diversas versões, muitas vezes faltava “cadência”, entre outros constrangimentos inerentes à criação artística.

Recuando para a produção de toda a trilogia, na edição deste matutino de 11 de Novembro de 2015, Mia Couto respondia que já tinha “a arquitectura (dos livros) toda feita”. Entretanto, enquanto produzia algumas alterações, naturalmente, foram ocorrendo.

Manteve-se, entretanto, a consciência crítica, assegura, de forma a não descarrilar em conflitos. O imperador, de alguma forma, é aqui tratado como um ser humano tão igual aos outros. Por outro lado, Mia Couto disse ter evitado construir vilões.

“Não gosto de colocar os bons e os maus”, disse, esclarecendo que opta por “construir a lógica que guia as acções dos personagens”, uma vez que acredita existir sempre uma motivação a volta das atitudes humanas.

Este desiderato exige – o que aconteceu nesta trilogia – que o escritor viajasse pelas mais diversas personalidades, desde mulher negra, homem mulato, atravessando identidades. “Essa viagem deu-me gozo e espero que o leitor perceba (neste sentido) que ele é muitas coisas em simultâneo e que possa (em função disso) desconstruir o conceito do outro – que só nos distancia”, disse.

Avó “gay”

Tsangatelo é avó de Imani. Ainda em “Mulheres de Cinza”, Mia Couto introduz esta temática que ainda não atingiu consensos na sociedade moçambicana, a homossexualidade.

Explorando a sua habilidade na construção do fantástico, o escritor descreve que, quando o velho mudou-se para a vizinha África do Sul para trabalhar nas minas, instalando residência definitiva nos confins de uma mina, relacionou-se sexualmente com um jovem rapaz, a quem dedicou amores.

Mia Couto começou respondendo que por muito tempo, individualmente, em função do contexto em que cresceu, no qual a homossexualidade era vista como um desvio comportamental, teve dificuldades para assimilar esta diferença.

“Foi uma luta que tive comigo mesmo para que eu vencesse esse preconceito sobre a homossexualidade e, hoje, sou a favor da sua causa”, se abriu o escritor.

A resposta anterior foi a contextualizar que a colocação de Tsangatelo naquela condição foi propositada, com a finalidade de convidar a sociedade a perceber que o deixa “triste que condicionemos a liberdade alheia devido aos nossos preconceitos e que reduzamos a definição que temos de um indivíduo à sua opção sexual”.

 

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