Samira Vera-Cruz: “VAI SER IMPOSSÍVEL ESQUECER MAPUTO”

Por Elton Pila

Samira Vera-Cruz, depois de ter estado em Maputo, no quadro da residência artística, voltará à capital do país como uma das seis realizadoras das Curtas PALOP. Participará de um debate e vai aproveitar a oportunidade para apresentar “BUSKA SANTU” no 8.º Fórum de Cinema Moçambicano Kugoma.

O filme fala do essencial à vida. No caso é uma viola. Mas podia ser qualquer outra coisa indispensável para que uma pessoa, mais do que sobreviver, viva. Mas, também, fala da Tabanka, não apenas como ritmo musical, mas como “um conjunto de rituais que espelham o período de formação do povo crioulo cabo-verdiano”.

O filme que marca a estreia de Samira Vera-Cruz (n. 1991), enquanto realizadora, tem no elenco apenas actores amadores, os preferidos da jovem cineasta por estes não terem, ainda, “vícios” de representação. O resultado final, já fora apresentado nalguns festivais, a recepção tem sido positiva, conta-nos a realizadora.

 

Mbenga: Artes e Reflexões (Mbenga): Como nasce o filme Buska Santu?

Samira Vera-cruz (SVC): O Filme “BUSKA SANTU” formou-se através de um conjunto de ideias: estava sentada no escritório e ouvi uma tabanka a passar, o que despertou o interesse de fazer um filme sobre a tabanka, mas que não fosse um documentário observacional. Passados alguns dias, sonhei com a ideia – inspirada no neo-realismo italiano, em particular o “Ladrão de Bicicletas” de Vittorio de Sica – escrevi o guião e avancei com a produção.

Na altura, trabalhava na Kriolscope Filmes e, ainda que não tivéssemos conseguido financiamento, decidimos avançar com o filme, sendo um investimento nosso para o desenvolvimento do cinema em Cabo Verde e representação do país. Tive a sorte de contar com uma equipa dedicada e com um elenco, na sua maioria sem experiência anterior no audiovisual, extremamente empenhado. Foi um trabalho de equipa e, do que chamamos em Cabo Verde, “djunta mom” (juntar as mãos – trabalho colectivo).

Mbenga: Este filme marca a sua estreia como realizadora. Como foi esta primeira experiência?

SVC: Foi um misto de emoções! O primeiro filme (o primeiro “bebé”) é sempre marcante. Tivemos imensas limitações dada a falta de financiamento e de tempo, por estarmos envolvidos noutros projectos que garantiam a sustentabilidade financeira para podermos fazer o filme. Mas, ao mesmo tempo, foi muito emocionante ver a equipa formar-se e o empenho de todos. Já tinha escrito muita coisa que acabei por nunca concretizar, mas com o “BUSKA SANTU” entreguei logo o guião à equipa o que me “obrigou” a avançar e finalizar – pela própria expectativa e dedicação de todos.

Podia focar-me no que não tinha. Mas decidi focar-me em todas as coisas positivas que estavam a acontecer e em concretizar uma ideia que mexeu com tanta gente – desde a equipa [de produção], o elenco, a Tabanka da Achada de Santo António. Apareceu, inclusive, um antropólogo-visual italiano, que depois se tornou meu amigo, e se ofereceu para fazer a segunda câmara. Qual é a probabilidade de estarmos a fazer um filme inspirado no neo-realismo italiano e surgir um italiano do nada para ajudar? Em suma: foi mágico.

Mbenga: Que lições foram tiradas para os trabalhos que seguiram (sabemos que existem dois em produção)?

SVC: Como expliquei, o “BUSKA SANTU” foi feito com inúmeras limitações e isso reflectiu-se no produto final. Aprendi a delegar mais – apesar de ainda concentrar demasiadas funções e achar que ainda tenho de aprender a distribuir as tarefas e não me agarrar tanto, mas isso já é defeito de fabrico –, a ter mais cuidados com detalhes de produção e continuidade, ao som, aprendi a soltar-me mais do que escrevi e ouvir opiniões da equipa de produção e do próprio elenco que enriquecem o filme. Também aprendi a ser mais firme com o que quero manter e sei que vai funcionar.

Desta vez, tive a facilidade de ter a equipa que formamos na nossa nova empresa Parallax Produções e que vai funcionando cada vez mais como uma máquina. Acho que a cada filme se aprende bastante e vamos evoluindo – inclusive enquanto pessoas. Apesar de ter estudado cinema numa universidade fenomenal, com professores incríveis, o colocar em prática é que nos testa. O adaptar à realidade da terra, às vantagens e desvantagens que temos… e saber moldar essas próprias desvantagens para que se tornem em pontos fortes!

Mbenga: “BUSKA SANTU” já passou por alguns festivais. Como tem sido a recepção do público?

SVC: Confesso que não esperava uma recepção tão positiva e tanto entusiasmo. Foquei-me tanto em fazer o filme, e tirar para fora algo que estava cá dentro, que acabei por não pensar tanto em como o filme seria recebido pelo público. Acho que isso foi bom porque anulou a parte da ansiedade.

Principalmente, em Cabo Verde, acho que o público gostou muito, porque se identificou: ouviu a sua língua, viu as suas ruas, o seu povo, a sua música, os seus rituais… é mágico conseguir ver isso no grande ecrã. Lá fora a curiosidade é outra: é um Cabo Verde que por norma não se vê no ecrã. Ultrapassa as praias paradisíacas e mostra a rotina e realidade comum do crioulo.

Mbenga: A experiência como jornalista serviu-lhe para o filme?

SVC: A experiência como jornalista foi curta, mas serviu-me para muita coisa, inclusive para os meus filmes. Deu-me o à vontade para fazer entrevistas, jogo de cintura para contornar alguma timidez até a forma como escrevo mudou com essa curta experiência. Devo muito ao meu primeiro chefe, Maurício de Carvalho, com quem aprendi imenso.

Mbenga: Explicou à imprensa cabo-verdiana que “BUSKA SANTU” consiste na busca de algo essencial na vida. Enquanto realizadora, que ideia de essencial procura passar ao espectador?

SVC: O essencial à vida, no caso do “BUSKA SANTU”, é a viola do pai, que é roubada. Sendo músico de rua, Djô di Nha Bia precisa da viola para “sobreviver” mas também para “viver” – é a sua fonte de rendimento, de equilíbrio, de criatividade e vida. É o equivalente ao seu “santo” da Tabanka.

Não sei se posso falar de uma ideia essencial, numa fase tão precoce do meu desenvolvimento enquanto cineasta. Mas tenho, essencialmente, dois focos neste momento (que podem evoluir e mudar como tanta coisa): mostrar um Cabo Verde (uma África) pouco conhecido (as suas tradições, superstições, mitos, etc.) – preservando uma memória colectiva intangível – e abordar temas, a meu ver, pouco discutidos na nossa sociedade – temas que causam identificação em qualquer país, mas que são ainda tabu, em Cabo Verde.

Acredito que é esse equilíbrio do fazer acontecer, não só para sobreviver, mas para viver, que é essencial. O cinema deve funcionar como ferramenta de educação para que possamos abordar temas sensíveis e necessários para o desenvolvimento das sociedades.

samira

Mbenga: O filme, em paralelo, conta-nos a história da Tabanka. Porquê um filme que tem Tabanka como pano de fundo e não Funaná ou a Morna?

SVC: Escolhi a tabanka, muito sinceramente, porque quis aprender mais. A morna, o funaná, o batuque, a coladeira, etc. são ritmos mais conhecidos e que vão sendo mais explorados. A tabanka, contrariamente ao que a maior parte das pessoas pensa, não é apenas um ritmo musical, mas um conjunto de rituais que espelham o período de formação do povo crioulo cabo-verdiano.

O conceito para o “BUSKA SANTU” é de integra-lo num trilogia, sendo as seguintes curtas sobre a mazurka e a coladeira. Estes dois filmes estão em stand-by, à espera de financiamento ou que, havendo tempo, a minha teimosia me leve a faze-los à mesma.

Mbenga: O elenco do filme é composto por actores amadores. Como foi feito o casting?

SVC: O “BUSKA SANTU” foi um caso particular porque, tal como a maior parte das minhas ideias partiu de um sonho, mas idealizei, imediatamente, quem seriam as pessoas a interpretar os papéis, dado os seus perfis e diferentes experiências. Também houve papéis que não haviam sido pensados inicialmente e surgiram em conversa com amigos, nomeadamente o papel da Maria (A louca) que foi interpretado pela Vera Cruz. Surgiu então uma parceira que se estendeu ao Sukuru e a futuros projectos na qual ela assumiu, para além do papel de actriz, o papel de directora de actores – facilitando grandemente o trabalho dos outros atores com menos experiência.

Mbenga: Porquê optou por trabalhar com actores amadores?

SVC: Apesar de respeitar muito os actores com mais experiência e acreditar que existem papéis que exigem essa mesma [experiência], gosto muito de trabalhar com actores amadores por ainda serem “verdes” e não possuírem “vícios” na representação. Isso parte, também, da grande influência do neo-realismo, em particular o italiano, que acredito ter no meu trabalho. Temos de ter em conta também que, Cabo Verde ainda não tem muitos actores com experiência no cinema (tem com certeza no teatro mas no cinema ainda não há muitos).

Mesmo trabalhando futuramente com actores com mais experiência, quero sempre que se mantenham os mais fiéis possível ao neo-realismo e à própria realidade dos personagens construídos. Não me parece que queira nunca algo demasiado elaborado e irreal – mas não podemos prever os caminhos e as mudanças que podem acontecer.

Kugoma
“BUSKA SANTU” será exibido no Kugoma 

Mbenga: Como recebeu o convite para participar do Kugoma?

SVC: O convite partiu da Diana Manhiça que conheci através do Concurso Curtas PALOP-TL UE, na residência artística em Maputo. Já tínhamos falado sobre isso, quando lá estive e deixei inclusive o filme, caso não pudesse regressar este ano. Felizmente, tornou-se possível! Fiquei super entusiasmada porque é uma oportunidade de voltar a ver as pessoas com quem aprendi imenso durante a residência artística e conhecer novas pessoas, trocar experiências e conhecer um bocadinho melhor a cidade que me acolheu tão bem há poucos meses. Mal posso esperar!

Mbenga: Quais imagens guarda de Maputo, Moçambique?

SVC: Fiquei muito impressionada com o dinamismo cultural que senti em diversas áreas: cinema, pintura, teatro, música, escultura. É um país e um povo muito rico e diverso. Infelizmente, não tive oportunidade de conhecer muito porque estivemos sempre a trabalhar, mas adorei tudo o que vi. Foi particularmente especial porque, por coincidência, fiquei hospedada na rua onde viveu um tio-avô meu. Uma parte da minha família é originária de Angola e com a guerra colonial, grande parte partiu para diferentes países entre os quais Moçambique. Tive a oportunidade de saber um pouco mais sobre a família que ficou em Maputo e adorei. Adorei a arquitectura da cidade, as pessoas, o mercado, o artesanato… ter visto o Índico pela primeira vez! Vai ser impossível esquecer Maputo. Ficou-me, definitivamente, marcada no coração e estou ansiosa por conhecer outras.

Mbenga: Já pensou em filmar alguma coisa cá (em Moçambique)? Qual seria a história? Quais seriam os espaços?

SVC: Teria muito gosto em filmar em Moçambique. Tenho inclusive o sonho de filmar uma ficção baseada na minha família lá, portanto na ida dos Cabo-verdianos de Angola para Moçambique com a guerra colonial. Mas isso é um projecto que exigirá financiamento e outras condições. Filmaria em Maputo, por enquanto, porque ainda não conheço outras cidades. Estou igualmente aberta a convites para outros projectos no vosso país. Teria muito gosto.

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O programa do Kugoma

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Sonha em mudar o mundo. Acredita no jornalismo e na literatura como agentes desta mudança. Colabora em alguns jornais, revistas e festivais de literatura. Actualmente, é redactor da Revista Literatas e tem a coluna semanal Como Sopra o Vento

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