A disfunção do storytelling na música «Timaka ta ma Ranger» de Mr. Bow

Por Inocêncio Albino

Um dos capítulos que animava o estudante que morava em mim, nos primeiros anos de formação, é a teorização que diversos autores fazem no campo da Comunicação no geral e do Jornalismo, no específico. Minha crença sobre a força do domínio teórico – claro, antes de se inventar qualquer investida para a prática da atividade – moveu-me a acreditar e mitificar, naturalmente, a frase do psicólogo alemão-americano Kurt Lewin (1890 – 1947), segundo a qual «não há nada mais prático do que uma boa teoria».

Hoje, mesmo experimentando uma certa hibernação na prática jornalística, os poucos anos, porém, de uma intensa e árdua relação com a atividade permitem-me testemunhar a função estratégica de uma boa teoria. Por isso, ainda que possa parecer supérfluo insistir na necessidade que se tem de conhecer, de maneira profunda, a teoria que explica e fundamenta qualquer atividade profissional, tal é uma insistência seminal para qualquer projeto que se quer que ganhe vida e se desenvolva de um modo salutar.

De maneira precisa e objetiva, é este o grande recado do professor doutor Fábio França, explicando, por exemplo, que sem o domínio teórico das relações públicas contemporâneas, os profissionais do campo não terão argumentos para persuadir os principais executivos sobre a importância estratégica da sua profissão para as organizações.

Alinhado com este raciocínio – e reagindo à autoflagelação profissional de alguns colegas, sucumbindo à barbárie da desnutrição teórica crónica, fundamentada pelo baixo caudal intelectual da aplicação das tantas boas teorias – em diversas ocasiões retornei à discussão teórica com vários confrades meus a fim de desistir-lhes de fazer do seu trabalho um festival de atropelos e atrocidades às regras elementares do campo.

Neste comentário, careço de espaço e tempo para me atardar discutindo os meus testes à funcionalidade de uma boa teoria e os sucessos alcançados. Porém, alivia-me o fato de esse não ser o eixo principal deste artigo. O ponto focal é que uma boa teoria dá-nos uma fundamentação lógica, racional, eticamente defensável e filosoficamente bem orientada, clarificando – antes de mais, a nós próprios como produtores e aos destinatários dos nossos produtos na sua condição de consumidores – a razão de nossa escolha ser uma e não outra.

Rumando ao destino que me aguarda, pretendo desenvolver neste texto uma reflexão em torno do que chamo disfunção do storytelling na música «Timaka ta ma Ranger» do artista moçambicano Mr. Bow, e fundamentar essa posição no fraco domínio, quase inexistente, da teoria que clarificaria essa escolha e não outra por parte do compositor e intérprete dessa obra musical.

Lembremo-nos, antes de mais, mesmo para exemplificar, que no século passado, MC Roger, músico que absorve minha admiração, cantava «falem bem ou mal de mim, mas falem». No entanto, é preciso clarificar que ainda que na ocasião não se tenha dado tanto «pano para manga» a essa baboseira, em jeito de crítica, o MC estava redondamente enganado. E, nos finais do século XX, só podia cantar essa música num país com um contexto propriamente moçambicano – para que se pudesse ficar por aí, como se ficou.

Hoje gestores de organizações, marcas, personalidades, carreiras e produtores de um sem número de áreas da ação humana não somente estão preocupados com que sejam publicamente conhecidos. Mas que sejam bem conhecidos e bem falados.

Portanto, nesse sentido, já não basta que as pessoas falem somente de nós. É preciso que falem bem, porque ao fazer isso elas estão expressando sua opinião sobre nós que nos posicionamos no mercado como marcas, produtos e serviços. E para que assumamos uma posição estratégica no mercado em que estamos concorrendo, um ponto de vista público favorável conta muito para essa reputação. Reputação, aliás, que é um valor que vem assumindo uma grande centralidade na relação entre partes interessadas em um tema – empresa, marca, produto, serviço, personalidade, etc.

E é evidente que o Moçambique dos anos 90 só queria refazer-se das consequências dos 16 anos de guerra civil de que foi vítima, e nada mais. Consumindo, por isso, quaisquer produtos simbólicos sem muitos questionamentos. Hoje, quase 30 anos depois, o contexto do país mudou radicalmente.

Ora, por tudo o que as pessoas sabem sobre Mr. Bow, foco na dimensão da sua vida pública e não privada, na sua condição e qualidade de músico, figura pública, é consensual afirmar que o artista é um exímio contador de histórias. De boas histórias. Desde a música «Kota de Família», dentre as mais antigas, até à «Guilhermina» dentre as mais recentes, denota-se na sua criação uma narrativa apurada, não barata nem vulgar, o que é muito bom na medida em que afirma alguma maturidade na arte de compor e vender histórias musicadas. O sucesso alcançado e a satisfação da opinião pública são essa prova viva.

Reconheço que dada a sua especialidade, os historiadores, escritores e jornalistas são vozes autorizadas para dizer muito sobre a arte de contar histórias. Porém, qualquer mortal humano sabe que pesquisar, processar dados, e divulgá-los em qualquer formato não é tarefa fácil. Ainda assim, o fazedor desse trabalho tem a vantagem de ser soberano na seleção das informações e na forma como ele quer tratá-las. Ou seja, factores ambientais, sociais, culturais e políticos não determinam muito na qualidade da obra a ser gerada em si.

Este é o storytelling, que sobrevive explorando fragmentos de acontecimentos processados na tecedura de uma história que se apresenta como um produto final em formato de música, vídeo, artigo, livro, etc.

Numa introdução fascinante sobre o tema, Jéssica de Cássia Rossi, autora do texto «Storytelling: A matéria-prima do Marketing», disponível no Google, escreve a frase que se segue:

«O ato de contar histórias sempre foi muito importante ao ser humano, serviu para a construção de todo um universo simbólico. Um arcabouço riquíssimo que na atualidade vem sendo utilizado para seduzir as pessoas. É o Storytelling, uma técnica que instrumentaliza as histórias, para promover um estilo de vida e manter o status quo existente. Utiliza todo o fascínio que a narração tem para conquistar as pessoas, principalmente no discurso veiculado pela mídia. Por extensão, passou a ser utilizado pelo Marketing e todo o processo de produção, circulação e consumo de produtos».

Dedicado ao Marketing, Comunicação & Negócios, o BLOG DO ELIAS, também consultado, enfatiza o entendimento de que uma boa história é capaz de criar engajamento e conectar pessoas. (…) Histórias reforçam visões, criam confiança, inspiram e geram sentimentos. No entanto, a página alerta sobre os perigos de uma organização que possui uma boa história sem agir nessa direção, acabando por frustrar ou irritar as pessoas. Nesse sentido o storydoing é desenvolvido para garantir um agir (atos) que se soma ao contar (discursos). Em poucas palavras, estamos a falar de um «discurso alinhado à prática».

O site Dolce Media reforça esta ilação sobre o storydoing ao afirmar que nada mais é do que transformar o conceito de marca difundido em uma história bem contada em uma forma de ação. Uma boa ação no exemplo de uma doação e luta por uma causa. Exemplo mais realístico de um storydoing no nosso contexto artístico-cultural foi a visita realizada pela cantora Lourena Nhate ao Hospital Provincial da Matola, no Dia Internacional da Criança, 1 de Junho.

Visto nessa perspetiva, até aqui o artista cuja obra anima este texto é reconhecido como portador de uma boa imagem-conceito, um homem que se pode resumir numa única frase: um chefe de família/«um kota de família». Até porque uma das suas narrativas confirma isso: eu sou um chefe de família/«eu sou um kota de família»; aquele que garante morrer ao lado da sua esposa/«nita fa nawena murandziwa».

Curiosamente, pela primeira vez e de forma imprevisível, autobiográfico, nesta segunda metade do ano, Mr. Bow aparece no espaço público musicando uma história mal planificada (se é que foi planificada) – e com muitos desaires no meio – sobre a sua vida privada. Uma história em que ele é protagonista, migrando, portanto, da dimensão de simples storyteller para a de storydoer ineficaz antes de instantes depois reaproveitar tais fragmentos de acontecimentos funestos da vida privada para gerar um novo storytelling através da música «Timaka Ta ma Ranger».

O que é que muda? Porque é que se muda? O que é que se pretende? Quais serão os impactos? Para quê provocá-los? Onde provocá-los? Quando provocá-los? Como geri-los?

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Certamente, as perguntas parecem supérfluas porém possuem sua relevância se se considerar que mudanças não planificadas, infundadas ou mal fundamentadas, desconsiderando potenciais, sem uma visão estratégica predefinida, desconsiderando a permeabilidade do contexto espácio-temporal para acolhe-las, geralmente criam uma série de desconfortos entre as pessoas por elas impactadas em face de terem interesses – que podem não ser convergentes – em volta de um mesmo tema.

Por isso, ainda que simples o fundamento para esta perspetiva corroborada por Luiz Alberto de Farias, ele não é simplista pois Cultura, clima, relacionamentos e diversos inputs oriundos do exterior e influenciadores do ambiente organizacional são determinantes na formação de forças e fraquezas de uma organização. Portanto, gerir uma marca é acima de tudo levar em conta e respeitar a opinião pública e o equilíbrio entre a diversidade. Respeitar a alteridade. É assumir alguma responsabilidade – entendida como a liberdade de fazer escolhas éticas e de forma transparente.

E onde é que fere a esses aspetos todos o storytelling que é a música «Timaka ta ma Ranger»? Faz sentido falar em disfunção do storytelling nessa história musicada? Em que medida?

Devo clarificar, antes de mais, que gosto dessa música enquanto música na medida em que me oferece matéria-prima para essa elaboração. Porém, tendo em conta a imbricação natural e sistemática entre o contexto, o sentido emanado da sua dimensão simbólica que se sustenta nas interações sociais, ela é um total fiasco. Muito em particular porque foi uma produção intencional – e, por isso, consciente. Outra razão é que nós só podemos falar de interação na existência de uma outra pessoa – a quem, ainda que não gostemos, temos a obrigação moral lhe de respeitar. O respeito pela alteridade. Assim, essa música peca na medida em que expressa um autêntico desrespeito pela alteridade – e todo o seu entorno já que está prefigurado pela mulher-objeto-da-música sendo «desenvergonhada» publicamente.

Segundo, ela aporta e dissemina uma metáfora perigosa – a questão tribal. E aqui é preciso entender muito bem sobre as forças e as limitações da metáfora. Afirma Gareth Morgan, em Imagens da organização, que «as metáforas só criam maneiras parciais de se ver, uma vez que ao nos encorajar a ver e entender o mundo de determinada perspectiva, elas nos levam a deixar de vê-lo de outras maneiras».

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Imagem do video

Assim, a música fala sobre uma tribo representada pelo intérprete (mr. Bow) que se qualifica como alegre e amorosa. Ainda assim, diariamente, é rechaçada por uma certa mulher. Ora, ainda que a tribo dessa mulher não tenha sido declarada na música, qualquer pessoa que rechaça o outro – neste caso vitimando o alegre e amoroso – pode ser rotulado de alguma forma. Qual é a importância social dessa opção, o tribalismo, numa altura que se quer centralizar a unidade na diversidade?

Terceiro, num sentido unidirecional, impondo a perspetiva de tudo o que é cantando como sendo a única válida, esta música prossegue centralizando o intérprete como protagonista de um conjunto de ações benevolentes, sendo, mais uma vez, rechaçado pela sociedade por causa da sua escolha – a escolha de se esposar com uma mulher mais velha e, supostamente, doentia.

Quarto, se nós considerarmos válida a possibilidade do desenvolvimento de uma relação amorosa com outra pessoa, depois da separação com alguém – até porque é válida – podemos inferir, sem grande esforço, a manifesta intenção de Mr. Bow em condicionar esse processo já que rotula a mulher de que fala como aquela que não consegue se manter numa relação. “Quantos lares essa mulher não conseguiu manter?”, uma pergunta retórica levantada por Bow, invalidando a capacidade de tal mulher se manter no lar, ao mesmo tempo que, de forma indelicada, coloca em hasta pública um assunto de vida privada em prejuízo da ex-parceira do quarto.

Quinto, Mr. Bow publica um suposto desabafo da mãe da mulher de que fala na música analisada, falando sobre a sua falta de educação e juízo. Mais um assunto de fórum familiar, íntimo e privado tratado publicamente e, provavelmente, sem o consentimento nem da mãe nem da filha com quem Bow se esposou.

YYY

Caminhando para o fim, devo reiterar que há muitos aspetos nesta música que posicionam o músico como quem procura obsessivamente «enterrar» a sua ex-mulher, intercalando essa busca por um coro segundo o qual «vai embora com a sua viatura e deixe-me com o meu povo». O que ainda não se sabe com perfeição é se esse povo – que estima a mulher moçambicana, na sua diversidade – concorda com essa atuação do artista. Essa narrativa musical ignora um contexto que a enforma, nalgumas vezes, não poucas, trabalhando parte dele única e exclusivamente para favorecer e promover a validação de Mr. Bow no espaço social. Portanto, é uma visão parcial da história e, por isso, absolutamente questionável.

Em síntese, parece-me que essa música é uma profunda e incrível contradição, na medida em que coloca aquele homem que se diz ser alegre e amoroso a rechaçar – mesmo esmiuçando – aquela mulher que inicialmente foi exposta como sendo a vilã da história. Como é que se pode instalar ódio onde já houve amor?

 

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