Provinciano*

Valério vende crédito na esquina, entre a Avenida Maguiguana e a Rua da Resistência, no Bairro Central, em Maputo. É um jovem de vinte e poucos anos.

Em conversas soltas, ele foi-me revelando as razões que o trouxeram a Maputo:

– Terminei a décima classe lá e não tinha como continuar a estudar, meus pais são “machambeiros”, sem condições para me pagar a escola, explica o jovem.

Perguntei, então, como teria vindo parar a Maputo, e Valério, meu amigo que vende crédito, respondeu-me ter vindo na boleia de um conhecido da família, que é camionista.

Quando chegou a Maputo, perdeu-se, atrapalhado com a multidão que circula pela 24 de Julho e com as casas que estão em cima de outras casas, imagino.

Sem telefone celular, nunca mais voltou a cruzar-se com o camionista, o boleiador. Por sorte, Valério encontrou seus conterrâneos. De imediato se converteram em família. Afinal, longe de casa, são todos irmãos, a língua é a linha que cose familiaridade. Talvez seja um jeito de se sentirem em casa.

Os amigos zambezianos arranjaram-lhe um emprego: vender crédito, de dia, numa banquinha de esquina, e bolachas, doces, cigarros e outras coisas que, na correria da metrópole, enganam o estômago.

À noite continua a vender crédito em frente ao prédio onde trabalhava como guarda, daí garante a renda que paga o seu quartinho no bairro Xipamanine e envia algum para a família na Zambézia.

Mas o sonho deste jovem era vir a Maputo para estudar, ser doctor. Era um Zambeze que sonhava com o Índico, porém foi travado por uma barragem encerrada.

Na voz de Wazimbo, no álbum Muli Hefu, do grupo RM, ganha vida um “provinciano” que veio da província “à procura de uma melhor chance/ a procura de uma oportunidade”.

Certamente, o que o intérprete canta é o desabafo de alguém de idade: “meus companheiros de turma já se realizaram, até Mondoviana já é dirigente do meu país”.

O arrependimento é a razão desse desabafo, os versos seguintes o ilustram: “Vim de lá tão longe à procura de uma oportunidade […] mas me enganei redondamente/ me arrependi/ afinal não passou de uma ilusão”.

Acomodado com a sua triste situação, ainda canta: “todo o sonho meu já se apagou, só me resta seguir o que o destino me reservou/ que pena”.

Essa letra é um retrato de muitos Valérios que, passados anos, perceberam que o “El dorado” não é uma bênção alcançado por todos.

Sentado numa cadeira de madeira improvisada, com material recolhido nas diversas obras que brotam todos os dias na cidade de Maputo. Cruza os braços, os olhar preso sabe-se lá onde com auriculares no ouvido.

O rádio toca, mas duvido que ele o escute. Quando um cliente se aproxima, levanta e vai lá ter. Nesse instante, às vezes, pela falta de troco conversa com os moços das outras três bancas vizinhas. Riem-se.

E eu quando passo por ali, sempre com a mania de perspectivar futuros – talvez viva mais lá do que cá – vejo o Valério encarnando os versos de Wazimbo.

Ele me interrompe:– não pagaste os cigarros de ontem. Apalpo os bolsos, mesmo ciente destes estarem vazios.

– Amigo, hoje não tenho dinheiro, pago-te amanhã, mas podes dar-me mais três?

*Título da música cujos versos cito no texto.

lEONEL2Acredito que pequenos gestos podem mudar o mundo. Encontrei no Jornalismo a possibilidade de reproduzir histórias inspiradoras. Passei pela rádio, prestei assessoria de imprensa a artistas e iniciativas. Colaborei em diversas página culturais do país. Actualmente sou repórter do jornal Notícias. A escrita é a minha arma”.

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