Foram seis meses de muito sofrimento e de suor derramado. Hoje saio da cama com a ideia de que valeu tudo a pena, é de dever cumprido, o sentimento. Depois de todas aquelas tardes sentado no murro ou na barraca com a malta a “bater xivotxonguas”[1], a fumar uma “buma”[2] e uns tabacos e ainda por cima enfrentar olhares de desaprovação das cotas da zona e de bacela[3] ter de aturar sermões dos velhos, só porque um gajo não consegue passar da décima classe. Estes últimos, uns cacatas[4]. Ainda não me recordo que oração terei feito em meio a embriaguez que os terá feito pagar os cem mil para a vaga. Contudo, nada disto importa agora, sou um homem novo, de roupa nova, deveres novos, novos desafios e oportunidades.

É meu primeiro dia, saio a rua e já sinto que sou tratado de maneira diferente, o olhar agora é de respeito e admiração, já ouvi dizer que até a Nádia que sempre disse que nada queria comigo e que eu não tinha chances já anda a minha procura para conversarmos. Já sei de que conversa se trata. Mas hoje não é sobre a Nádia, hoje eu é que sou o foco. Eu é que sou o centro. Até o ar está diferente, é mais leve, saboreio cada respiração, o céu azul e ensolarado combina com a minha roupa. O sapato preto e bem engraxado reflete o brilho que carrego no olhar, de facto, sou um homem novo. Caminho altivo, em meio a caminhada dou uma pausa na barraca do sô Zé, alguns hábitos nunca morrem. Peço uma quentinha[5], dou um gole e guardo o resto para a viagem no bolso de trás das calcas. A caminhada é longa, mas faço-a calmamente enquanto saboreio cada olhar de espanto a mistura com um pouco de inveja que enxergo no rosto das senhoras do dumbanengue[6] cujo oficio é falar mal dos outros. Más línguas! hoje dói o facto de não terem cem paus para comprar uma vaga para os filhos, que continuam na vida do murro ou dos blocos ou ainda a carregar trochas no mercado. Não há emprego? É claro que há: elas é que são pobres demais para comprar um.    

Chego ao job[7], sou apresentado ao chefe do dia, não deve ser muito mais velho do que eu, embora muito mais baixinho, não deve ter mais de 1m e 55 cm, chega a parecer um anão perto dos meus 1m72cm, o rosto é fresco, jovial, a fala é firme, mas o pulso é de gato. Não tenho dúvidas, os pais dele também tinham cem paus!

Recebo as ordens e saio a rua. Vou com um colega que conheci hoje. É um tipo porreiro, conta a história dele, não é muito diferente da minha: Pais cansados, mandaram para Matalane. Cidadãos comuns não querem cruzar o olhar com o nosso, evitam-nos a todo o custo, alguns cumprimentam timidamente: – Chefe! – ahhh, sabe bem ouvir isto!

Ofereço ao meu novo companheiro um gole da quentinha. Dá dois sem pestanejar, é um homem preparado. Agora sim, estamos prontos para servir! Lá vem um homem com rastas[8], apressado, para onde é que será que vai? São 08 da manhã. Decidimos interpela-lo. Pára nervosamente, peço-lhe o BI, vasculha a carteira como se o procurasse e de lá nada sai. – Vou ao trabalho, diz ele. Já estou um pouco atrasado, prossegue.

– Estamos a fazer o nosso trabalho! Respondo irritado, como ousa questionar o nosso trabalho, quem é você?

– Desculpa chefe! responde timidamente

– Já agora, abra a mochila e a lancheira, queremos ver o que tem aí dentro. Diz o meu colega.

– É a minha ferramenta e a minha comida! Responde num tom desesperado.

– Tem documentos da ferramenta, como é que sabemos que não é um ladrão que usa para desmontar casas? Digo levantando a voz.

– Não tenho, comprei-a de um amigo.

– Epah, ainda por cima nem tem identificação, como é que sabemos que você não roubou? Prossigo, agarrando-o pelo pulso

– Mas chefe! O homenzinho treme, quase que se mija nas calças

– Epah, acho que vai ter de acompanhar-nos a esquadra! Quase que entro em êxtase ao olhar para a cara desesperada do homenzinho quando menciono a esquadra, encolheu-se tanto, está tão pequeno! – Rio-me por dentro, enquanto tento manter o semblante frio.

– Como é que pretende resolver a situação? Indaga o meu colega. A esta altura já sei do que se trata, nunca pensei que soubesse tão bem. Uma vez passei por uma situação idêntica, odiei a polícia naquele dia. Mas agora entendo. Só falta uma coisa:

De rompante, desligo o pensamento levo para o ar a mão e enfio na cara do homenzinho um safanão que me soube pela vida. Ahhhhh, uma sensação orgâsmica! Queria prosseguir, mas o olhar do meu colega diz que nem ele estava a espera e que se calhar devesse parar. Compreendo sem uma palavra dizer, e com a mão ainda a coçar levo-a ao bolso.

O homenzinho, apanhado de surpresa, está trêmulo e sem palavras. Vejo as lágrimas que em vão tenta segurar. Vai a carteira devagar e tira uma nota de cinquenta meticais.

– Mas o que é isso? Questiono num tom impaciente. – Está a tentar subornar a polícia?

– Desculpa chefe! Responde o jovem, incapaz de segurar as lagrimas.

– Vamos a esquadra agora! Bradou o meu colega.

– Desculpa chefe, retruca o homenzinho. Aparentemente, sem saber o que fazer.

– Depois sujei a farda por tua causa, vais pagar por isto. Digo indignado.

Desesperado o homenzinho vai a carteira mais uma vez e tira uma nota de Cem meticais.

– é tudo o que tenho chefe, é o meu dinheiro de chapa para esta semana, sou serralheiro. Responde por entre soluços desesperados, é de dar pena, mas não é o que sinto. Movido, já penso nas três garrafas que vamos comprar.  

– Agora falou como homem, porque não disse logo? Diz o meu colega em voz alta, devolvendo a mochila ao homenzinho.

Ahhhh! Se eu soubesse que ser chefe era tão bom, teria eu mesmo guardado o dinheiro para me alistar!


[1] Xivotxonguas – bebida espirituosa vendida em garrafas pequenas de vidro a preço muito baixo

[2] Buma – cigarro de marijuana

[3] Bacela – Brinde

[4] Cacata – Avarento

[5] Quentinha – xivotxongua

[6] Dumbanengue – local de comercio informal onde as pessoas na sua maioria sentam-se no chão

[7] Job – Trabalho em inglês

[8] Rastas – Trancas do tipo Dreadlocks, populares entre fazedores de musica reggae