Perdi as chaves, não tenho como entrar, a porta está fechada, não posso arrombar, não tenho como invadir, existem territórios que os meus pés descalços não podem tocar. Termino o primeiro parágrafo com sucesso, respiro fundo e tenho a impressão, minto, tenho a certeza: existe um inimigo entre nós. Paranoia. A música de Jordan Rakei acalma-me. Por instantes, tenho a nítida ideia de que estou lucid.
“It was all / Something or nothing / To me”
O quintal é tão espaçoso, não há vedação que me afaste destes pensamentos daninhos. Nada brota, nem as folhas de abóbora, nem a melancia. Mas estou feliz, prestes a terminar o segundo parágrafo: o meu segundo soco no estômago da AI. Ainda consigo.
Sento-me na areia, deixo a minha filha na areia, tão calma, tão golosa. A minha mão veloz impede-a de levar à boca 0,0000000000000000001% da terra que tenho como minha.
Minha. É tão bom abrir a boca e dizer minha.
É tão gratificante ser grato. Agradecer pelas dádivas que tenho.
Escrevemos na areia: eu, num português moçambicano; ela, numa língua que só ela pode decifrar. Estou tão ansioso por a ouvir falar. Mas não, é tão bom ouvi-la já agora. Os seus discursos de afecto são tão genuínos.
No chão, vejo um besouro a carregar o mundo. A rolar, a rolar e a rolar. Abraço a minha filha. Alika não se deixa abraçar. Debate-se, enquanto, calmo, tento contar a história do besouro preto.
Criei um título: A história do besouro preto. Mas percebi que não sei falar de animais. Desisti, e continuo a ouvir no meu cérebro a música de Jordan.
Dois besouros pretos
O besouro macho carrega o mundo nas costas. Tem a certeza total e absoluta de que existe um inimigo. A cada centímetro que avança, alimenta a sua teoria. A bola mantém-se firme, mas ele fica sem forças para a carregar, por isso pára, para ganhar fôlego.
Ao anoitecer, chega a casa com o seu mundo enorme, cansado.
A besoura fêmea carrega um planeta de incertezas, dúvidas e inseguranças. Desconfia de que existe um inimigo, mas a sua insegurança não lhe permite ter firmeza. Ainda assim, a cada centímetro que caminha, a bola perde areia.
Ao anoitecer, recebe o besouro macho, à espera de que a areia que perdeu venha completar o seu mundo. Já completou. Agora, não. Pois, quando sente que as expectativas não se cumprem, quando vê o besouro a entrar com o seu mundo enorme, sente ainda mais medo, mais insegurança, e o que era dúvida vira certeza: realmente, existe um inimigo.
Amanhece, os dois besouros seguem o seu rumo. O besouro macho pausa, alimentou demais o seu mundo e, exausto, descansa.
A minha filha tenta apanhar o besouro. Eu afasto-a. O besouro tenta voar e é derrubado por uma força que desconheço.
Vejo a sua queda. Vejo as formigas a aproximarem-se. Enquanto distribuo a minha atenção entre Alika e o besouro, o tempo passa. As formigas devoram as incertezas, os medos, até sobrarem apenas a carcaça. Alika chora. Tenho de entrar em casa. Preparar o cerelac, o puré, a papinha, a água, o banho e contar-lhe o fim da história. Graças a Deus, ainda tenho as chaves de casa. Mas tenho a certeza de que o mundo da besoura fêmea desmoronou. Solitária, o novo amanhecer dirá quem era, afinal, o inimigo.
“I was trapped in the flesh
Moving out of darkness
Caught amongst the flames
Now my heart’s ablaze
Broken down
And now I’m stranded here
Oh, the light
Shines on me
Shines on me too much
Oh, the light
Oh, the light.”